Lipoaspiração da Constituição. Por Delfim Neto – Heron Cid
Bastidores

Lipoaspiração da Constituição. Por Delfim Neto

3 de maio de 2018 às 11h11

O Brasil tem um longo caminho a percorrer para voltar a um crescimento robusto, inclusivo e sustentável. Tem de enfrentar pelo menos cinco questões complexas: 1. Resolver o problema da injustiça fiscal com um sistema tributário que, sem aumentar os impostos já exagerados, distribua equanimemente a sua carga entre o capital e o trabalho. 2. Construir um orçamento de base zero.

3. Rever todos os programas que se acumularam ao longo dos séculos (como movimentos geológicos). 4. Realizar uma crítica rigorosa dos programas subsidiados para saber quais, de fato, estimulam o emprego e melhoram a produtividade total.

5. Melhorar a alocação dos fatores de produção através de mercados competitivos e reduzir o papel do Estado-Produtor. 6. Integrar-se adequadamente à economia mundial.

Precisamos de um Estado forte, constitucionalmente limitado, capaz de regular adequadamente os mercados, principalmente o financeiro. Deixado a si mesmo, este costuma impor o curto-prazismo ao sistema produtivo real, o que reduz o investimento (e o emprego) e põe em risco a própria democracia.

É preciso deixar de lado a ridícula disputa Estado x mercado. O “mercado” só é eficiente com um “Estado” forte capaz de garantir a propriedade privada, que não é um direito divino, mas uma construção social que ajuda a organizar uma sociedade livre. Nossos “marxistas” de passeata continuam a ignorar esse fato.

Talvez seja hora de lembrá-los que em 1959, no programa de Bad Godesberg, o Partido Social-Democrata alemão (SDP) abandonou o marxismo e adotou o mote: “Tanto mercado quanto seja possível, tanto Estado quanto seja necessário”. Isso, com palavras diferentes, é o que afirma o Art. 173 da Constituição de 1988, que fingem desconhecer:

“Ressalvado os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definido em lei”.

Há 30 anos, portanto, o constituinte privilegiou a produção de bens e serviços desejados pela sociedade, através do sistema de economia de mercado. Por quê? Pela consciência de que um “Estado-produtor controlador do emprego” é uma clara ameaça às liberdades individuais e estimula a corrupção, além de ser ineficiente, como mostra a história.

A maioria de membros da Constituinte era de cidadãos que sofreram a experiência de terem sido incomodados pelo regime autoritário que havia durado 20 anos. É por isso que o valor supremo da Constituição de 1988 é a combinação da mais ampla liberdade civil com a mitigação das desigualdades de qualquer natureza.

Esse objetivo é a causa de uma constituição de 250 artigos e que regula até transfusão de sangue. Já sofreu uma centena de emendas, todas na mesma direção: o claro fortalecimento das liberdades individuais diante do poder do Estado. Não é sem razão que a edição impressa da Constituição pelo Senado tem 600 páginas…

Com a experiência de um constituinte jejuno em Direito Constitucional, entendo que tais cuidados foram tomados para deixar a menor margem possível para sua “interpretação”. A sacralização do Supremo Tribunal Federal foi apenas para garantir o seu cumprimento, além de exercer o poder moderador e exigir a independência harmônica dos Três Poderes.

Não há dúvida de que nos 30 anos a Constituição prestou bons serviços, mas a sua construção analítica onde os velhos “deveres do Estado” foram transformados em “direitos do cidadão”, sem a menor referência aos seus “deveres”, estimulou uma judicialização da atividade do Executivo e uma reativa politização da atividade jurisdicional que tornaram muito difícil a administração do País cujo objetivo, pelo Art. 3º da Constituição, é: “I. construir uma sociedade livre, justa e solidária; II. garantir o desenvolvimento nacional; III. erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV. promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

A evolução natural da sociedade revelou contradições objetivas que complicam a tarefa do poder moderador, o Supremo Tribunal Federal. Emparedado, ele tem procurado desincumbir-se da sua função, com uma hermenêutica “criativa” que produz um aggiornamento constitucional duvidoso.

Precisamos mesmo, como sugeriu o ilustre ministro Jobim, é de uma lipoaspiração que reduza a Constituição aos seus princípios e direitos e deixe ao Supremo, respeitando-os, a atribuição de compatibilizá-los com a evolução dos usos e costumes. 

 Carta Capital