O que eu não disse a Agnaldo Almeida (Por Heron Cid) – Heron Cid
Crônicas

O que eu não disse a Agnaldo Almeida (Por Heron Cid)

25 de fevereiro de 2024 às 14h23 Por Heron Cid
Produção de Agnaldo Almeida alcançou charme na forma, elegância no conteúdo e estilo na embalagem

A última vez que vi Agnaldo Almeida foi nos corredores de uma clínica de imagem, em João Pessoa. Trocamos uma espécie de aceno com o olhar. Fisicamente debilitado e com sua marcante boina, ficou no cantinho dele. Eu, afetado pela timidez que vez por outra aflora, fiquei indeciso se meu cumprimento ajudava ou invadia seu momento particular de delicado tratamento.

Deveria ter arriscado, porque seria uma grande oportunidade – agora vejo que a última – de testemunhar pessoalmente sobre sua influência ao leitor que mais tarde viria ser jornalista. Recém chegado na capital, oriundo de Marizópolis, a coluna de Agnaldo no Jornal O Norte era meu hábito diário de consumo.

Não que aquele estudante de jornalismo da UFPB pudesse exercer a rotina de compra do exemplar dos Diários Associados, mas porque o privilégio do acesso a todos os jornais impressos da época era um bônus do estágio na redação da Assessoria de Imprensa da UFPB, dirigida com maestria por Rubens Nóbrega.

O texto do decano fluía escorreito e leve aos olhos de quem descobria as letras do jornalismo. As análises políticas limpas, diretas, precisas, encharcadas de boas tiradas aguçavam a audiência e o prazer da leitura. Em décadas de labor, a crônica política de Agnaldo Almeida alcançou um nível de alto gabarito, no charme da forma, na elegância do conteúdo e no estilo da embalagem.

De todos os predicados do talento absoluto, transbordava o equilíbrio e a ponderação, artigos raros no jornalismo de hoje em dia, intoxicado pelas polarizações políticas e histerias ideológicas. Dos arquivos do finado twitter, hoje rebatizado simplesmente de X, capturei, do distante 2013, algumas frases ilustrativas do caráter de sua abordagem profissional e visão de mundo.

“Entre os humanos, é tão necessário aceitar as diferenças quanto, entre os animais, é marcar o território”. Outra: “Não tenham dúvidas: em qualquer idioma, a palavra mais bonita não é saudade: é tolerância”. E, ainda, exemplares de sua refinada e transbordante ironia: “Lula vai escrever no NYT. Os tucanos ficaram araras. Afinal, a”esperança” vai vencer as letras?”. Ou: “Virgem em Tambaú? Só mesmo no carnaval ou em baile infantil”.

Se houvesse me encorajado a ir até Agnaldo naquele dia, teria falado por inúmeros leitores, colegas jornalistas, fãs e admiradores. Reconheceria de viva voz a contribuição involuntária e influência despretensiosa na boa formação de novos profissionais da nossa geração, tantos que, feito eu, lamentam sua partida numa manhã de domingo. Um domingo como aqueles que só ficavam completos com a degustação de sua obrigatória coluna.

Não era apenas um bar: o dia que derrubaram o Pau Mole (Por Agnaldo Almeida)

Perdoem-me os eventuais leitores da coluna, mas hoje não há como falar de política. Derrubaram o Pau Mole. Em meio aos escombros, no final da tarde ontem, quando tudo ali já era passado, bebi o último gole de cerveja. Um pouco quente – já tinham levado o freezer – talvez empoeirado, mas eu tinha comigo que aquela teria de ser uma cerveja inevitável. Tomei-a, como diria Jânio, porque qui-lo, mas tomei-a também porque era absolutamente necessário.

O Pau Mole é uma instituição. De caridade, podemos dizer assim, se considerarmos a faixa etária dos seus freqüentadores. Para todos, sempre ficou evidente que aquilo não era apenas um bar. Não era uma barraquinha de praia como tantas outras que existem na orla pessoense. O Pau Mole era um senado. Um senadinho no melhor estilo. Como centenas de outros que existem nas capitais brasileiras.

Mas, enfim, derrubaram-no. A bem da urbanidade, da paisagem asséptica e da indústria turística puseram abaixo um dos espaços mais democráticos de João Pessoa. Mesmo caindo aos pedaços, sem luxo, requinte ou coisa que o valha, o Pau Mole conseguia juntar numa mesma mesa todo o espectro político da Paraíba.

Os maranhistas dividiam suas doses com os cassistas; os comunistas – se ainda os há – não se constrangiam em conversar com eventuais empresários capitalistas, sempre em busca de lucro. Os gays, e não raro eles apareciam, eram tratados com respeito. Com distância, mas com respeito. As prostitutas, os mendigos, os alcoólatras de sarjeta – todos tinham seu espaço naquela pequena e estranhamente agradável barraca.

Jornalistas, escritores, advogados, empresários e juizes aposentados, ex-políticos, velhos fiscais de consumo e funcionários fugindo do expediente sempre podiam ser encontrados por ali. Numa conversa onde tinha vez quem falava mais alto, surgiam piadas, histórias do arco da velha, as novas da política e as maledicências sobre o high-society. Ah, essas maledicências eram o perfeito tira-gosto daqueles encontros.

Ao ver o amontoado de telhas, tijolos e madeiras, na tarde de ontem, me ocorreu que instituições como o Pau Mole são como idéias: ninguém as derruba completamente. No tempo do regime militar, por exemplo, centenas de esquerdistas foram mortos, outros em igual número foram presos e outros ainda continuam desaparecidos. Por mais que tenham feito para eliminar os “agentes da subversão”, os militares nunca conseguiram acabar com a idéia subversiva.

Acho que no caso dos boêmios se dá a mesma coisa. E de maneira muito mais saudável e pacífica. Ninguém precisa morrer ou ser preso. Ninguém ficará para sempre no rol dos desaparecidos. Derrubem-se quantos bares quiserem. Destruam paredes, tetos e quebrem garrafas – mas acabar com boêmios jamais conseguirão. O mundo não seria o mesmo sem eles. Muito menos seria melhor.

Sentencia Millor, com a sua embriagada sabedoria, que a história do mundo registra muitas guerras, mas nenhuma entre dois exércitos de bêbados. E como dizia Martinho Moreira Franco, essa coluna não quer fazer apologia de bebidas alcoólicas, mas se atreve apenas a dizer que a boemia é um dos traços da natureza do homem, assim como acompanhar a moda é da natureza das mulheres. O que não significa que mulheres não possam ser boêmias nem homens sejam impedidos de adotar suas roupas de griffe.

O Pau Mole, por onde já andaram tantos que se foram, não é o primeiro nem será o último refúgio boêmio a ser capturado pela onda do progresso. A Bambu, na Lagoa, era uma catedral. Derrubaram-na na administração Dorgival Terceiro Neto. E o mundo não se acabou por conta disso. O Luzeirinho, o Pietros, o Drive-in, o Gambrinus e tantos outros foram sendo tragados pela fúria do desenvolvimento. Resultado: nem o desenvolvimento chegou nem os boêmios sumiram.

É da índole dos boêmios não reclamar muito. Vão-se os bares, vão-se até mesmo os amigos – e no Pau Mole se foram tantos – mas ficam os copos. Fica a amizade sempre relembrada, a saudade permanente, a nota íntima de um tempo que só acabará quando ele não mais existir.

No coração da boemia não cabe ressentimentos. No máximo, uma tristezazinha porque quando derrubam uma instituição como o Pau Mole, a turma sempre se pergunta: qual vai ser a próxima? Tim-tim.

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