Os métodos não permitem distinguir culpado do inocente (por Reinaldo Azevedo) – Heron Cid
Bastidores

Os métodos não permitem distinguir culpado do inocente (por Reinaldo Azevedo)

12 de junho de 2020 às 12h53
Policiais federais fazem operação no Palácio das Laranjeiras, residência do governador do Rio Policiais federais fazem operação no Palácio das Laranjeiras, residência do governador do Rio - Pilar Olivares - 26.mai.20/Reuters

É fácil levar a imprensa —no seu conjunto e sem exceções— a servir de instrumento da fascistização bolsonarista: ofereça a ela alguns acusados de corrupção! Como, com efeito, a política brasileira não é um convento (ou é, mas daqueles do Eça de Queiroz pré-conversão), basta que a Polícia Federal —a pedido do Ministério Público e com a autorização de um juiz— realize algumas operações espetaculosas e pronto! A coisa está feita.

Na coluna passada, escrevi neste espaço: “Eis a PGR a servir de pátio de manobra da sanha de Bolsonaro contra os governadores. A Lava Jato destruidora de instituições —que morreu como projeto de poder de Sergio Moro e dos ‘white blocs’ do MPF— renasce em espírito com Augusto Aras, agora sob os auspícios do bolsonarismo”.

As operações de caça a governadores em razão de irregularidades reais ou supostas envolvendo a compra de respiradores estavam escritas nas estrelas e também nos tuítes, entrevistas e telefonemas ameaçadores da deputada Carla Zambelli (PSL-SP).

É impressionante que essa senhora não seja convocada a prestar esclarecimentos a seus pares. Comporta-se como uma vivandeira da Polícia Federal. Num telefonema que veio a público, de maneira arreganhada, ameaça uma assessora da ex-aliada e hoje desafeta Joice Hasselmann.

O fato de que ambas se mereçam não elimina a evidência de que Carla apela a um órgão de Estado, a PF, no que tem cheiro de chantagem. Em troca de seu convite à interlocutora para a quebra de lealdade, há a oferta de um emprego. No Twitter, anuncia, sem pudor, que o governador de São Paulo pode esperar pela chegada da Polícia Federal. Ela teve a premonição, vocês devem se lembrar, de que Wilson Witzel seria garfado.

Não é sem desconforto e desalento que essa senhora vem parar na minha coluna. A versão literária que eu tinha, até então, de pessoas como Carla apelava até a certo lirismo…

Eis aí. Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello, seu Boneco de Mamulengo Fardado da Saúde —com sua voz de barítono que não sabe o que cantar— não entregaram nem os respiradores nem os kits de UTI prometidos aos estados. Segundo projeções de modelos matemáticos com os quais opera a Casa Branca, tudo o mais constante, o Brasil ultrapassa os EUA em números de mortos no dia 29 de julho. E daí?

Ainda que a Polícia Federal quisesse investigar compras emergenciais feitas pelo Ministério da Saúde, não haveria muito o que apurar, à parte algumas estrepolias com cloroquina. A rigor, a pasta não existe, a não ser pelo esforço de esconder os mortos. Esses valentes são incapazes de entregar respiradores, mas sabem como caçar aqueles que os compram.

Há tempos Bolsonaro havia dado a senha: essa preocupação com a Covid-19 serviria apenas, segundo o pensador, à articulação de esquemas de corrupção. E, obviamente, não descarto que muita safadeza tenha sido feita nesse tempo. O busílis é outro. Os métodos que mais uma vez estão em curso não permitem distinguir o certo do errado, o culpado do inocente ou o malfeito da acusação infundada.

E não permitem porque, uma vez mais, mandaram-se às favas o devido processo legal e os procedimentos mais comezinhos de uma investigação. As operações são desfechadas, e a nós, da imprensa, é fornecida a lista de suspeitas e supostas evidências que não fazem investigados, mas culpados.

A absolutização de quaisquer valores —nem que sejam o bem, o belo e o justo— serve a projetos autoritários se deixamos de lado as regras que organizam o devido processo legal e os direitos garantidos pela Constituição. E, mais uma vez e como sempre, eles estão indo para o lixo. O Brasil é, em parte, governado por vazadores de investigações conduzidas em sigilo.

Sei o que me custou —e custou muito caro!— apontar os arreganhos autoritários da Lava Jato já em 2014, três meses depois de deflagrada a operação. Deu no que deu! Uma nova caçada está em curso. “O fascismo começa caçando tarados”, afirmou Bertolucci em entrevista. E o disse não por apreço aos tarados. Mas por horror ao fascismo.

Não aprendemos nada nem esquecemos nada.

Folha

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