Doença. Por Luís Fernando Veríssimo – Heron Cid
Bastidores

Doença. Por Luís Fernando Veríssimo

31 de janeiro de 2019 às 12h30 Por Heron Cid

Santo Agostinho escreveu que, entre as tentações do homem, nenhuma era mais perigosa do que a “doença da curiosidade”. Era ela que nos levava a tentar descobrir os segredos da natureza, “que estão além da nossa compreensão, que em nada nos beneficiarão e que o homem não deve saber”. Em outras palavras, o mesmo conselho que Deus deu a Adão e Eva no Paraíso, advertindo-os a não comer o fruto da árvore do saber para não contrair a doença. Eva — sempre elas — não se aguentou e comeu o fruto proibido. Resultado: perdemos o paraíso da ignorância satisfeita e estamos, desde então, tentando descobrir que diabo de universo é este em que nos meteram, esta bola girando entre outras bolas num espaço imensurável, sem manual de instrução. Santo Agostinho e outros tentaram nos convencer a aceitar os limites da fé como os limites do conhecimento. Tentar compreender mais longe só nos traria perplexidade e angústia e nenhum benefício. Mas a doença da curiosidade já estava adiantada demais.

A fase mais aguda da doença chegou com a inauguração, há dez anos, num subterrâneo na fronteira da Suíça com a França, do tal acelerador gigante que jogaria prótons contra prótons em condições inéditas para tentar reproduzir a origem do mundo, liberar uma partícula subatômica que até então só existia em teoria e chegar mais perto de descobrir como funciona o universo. Quer dizer, os descendentes de Adão e Eva pretendiam levar a rebeldia do casal ao máximo e espiar por baixo do camisolão de Deus. Mas, dez anos e alguns bilhões de dólares depois, fora a importante descoberta da subpartícula presumida chamada Bóson de Higgs, o acelerador não tem muito a festejar no seu décimo aniversário. Não vieram o prometido redimensionamento do espaço, a explicação dos buracos negros, revelações sobre a origem de tudo. Etc.

Quanto mais se sabe sobre o funcionamento do universo, mais aumentam a perplexidade e a angústia das quais Santo Agostinho quis nos poupar. Pois não se pode compreender tudo — pelo menos não com este cérebro que mal compreende a si mesmo.

Mas os efeitos da fruta proibida ainda são fortes. E a doença da curiosidade não tem cura.

O Globo

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