Na encruzilhada. Por Maria Herminia Tavares de Almeida – Heron Cid
Bastidores

Na encruzilhada. Por Maria Herminia Tavares de Almeida

24 de outubro de 2018 às 15h30

Cientistas políticos chamam de “encruzilhadas críticas” as situações nas quais, em contexto de incerteza, a decisão de protagonistas relevantes define um caminho sem volta, em prejuízo de outros possíveis: uma vez tomado, o caminho limita, por um bom tempo, os passos possíveis dali em diante. Estamos em um desses momentos, e os protagonistas que farão essa escolha crucial são os milhões de eleitores brasileiros.

Por isso, é apropriado especular sobre o rumo que o país poderá tomar, caso se confirme o resultado que as pesquisas de opinião indicam. Ao fazê-lo, porém, toda cautela é pouca: analistas da sociedade e do comportamento humano são treinados para explicar o passado e não dispõem de instrumentos afiados para falar do futuro com segurança.

Colegas cuja integridade pessoal e competência profissional merecem respeito sustentam que a democracia não corre risco, mesmo que vença o candidato de extrema direita. Argumentam que não basta olhar para o discurso e o compromisso dos candidatos com os princípios democráticos; é preciso também levar em conta os antídotos institucionais contra possíveis tendências autoritárias.

Nessa ordem de ideias, supor que a eleição de políticos indiferentes ou avessos aos valores democráticos colocaria em xeque o regime de liberdades equivaleria a ignorar os freios que as instituições são capazes de impor à conduta dos políticos.

A tese aqui é forte: as regras que limitam a vontade dos governantes acabarão por forçá-los à moderação. O raciocínio que vale para os deputados seguidores de Bolsonaro —que estão longe de ser hegemônicos no Legislativo— é mais discutível para um Bolsonaro presidente.

O chefe de governo que for eleito no domingo (28) enfrentará enormes desafios, dois deles prementes para libertar o país da crise econômica e política: alguma reforma fiscal que tire a economia do sufoco e permita crescimento; e a pacificação política, a fim de reduzir a polarização que dilacera a sociedade, ao estimular a incivilidade e a violência.

As mudanças necessárias, no primeiro caso, demandam um presidente com capacidade e disposição de coordenar sua base parlamentar –condição indispensável para o bom funcionamento do presidencialismo de coalizão.

As urnas geraram um Congresso fragmentado como nunca, com pouquíssimas lideranças experientes. O partido do candidato favorito é excepcionalmente diminuto, e as pequenas agremiações de direita e de centro não haverão de engrossar a base governista por mera atração gravitacional. Fazê-los atuar a favor de uma agenda de reformas, qualquer que seja, exigirá do presidente muita capacidade de negociação, muita flexibilidade para ouvir, convencer, acomodar interesses e ceder. Isso pressupõe que o presidente tenha tino político e inclinação para o diálogo, qualidades que Fernando Henrique e Lula possuíam de sobra, faltavam a Collor e Dilma e não caracterizam o candidato da extrema direita.

Ele tampouco parece ter vocação ou vontade de pacificação política. Seu histórico de destempero, insultos e intimidação nem de longe o qualifica para a tarefa.

Suas declarações durante a campanha eleitoral –veja-se a mensagem em vídeo aos apoiadores que se manifestavam em São Paulo, no último domingo, na qual ameaça banir os opositores e mandar Fernando Haddad para a prisão– vêm incentivando a virulência de seus apoiadores mais ferozes nas redes sociais, quando não na vida real. Ao declarar que não tem responsabilidade nem controle sobre o que fazem em seu nome, o candidato lhes dá carta-branca.

O Brasil tem o perverso privilégio de integrar a liga das sociedades mais violentas do mundo. Nas periferias urbanas, nos fundões do país profundo, nas fronteiras onde o agronegócio investe contra as populações indígenas, nos pontos de passagem do comércio controlado pelo crime organizado —enfim, quase por toda parte—​, a violência corre solta, mesmo quando a lei a proíbe e seus agentes querem coibi-la. Imagine-se quando os que a praticam se sentirem autorizados por um presidente que durante a campanha eleitoral a enalteceu ao tempo em que encoraja implicitamente a brutalidade dos seus seguidores.

O Brasil da Constituição de 1988 construiu fortes instituições de controle dos governantes e de defesa da liberdade dos cidadãos. A maioria no país é também moderada e não apoia a agenda de extrema direita. Mas não se pode subestimar a erosão da democracia que um governo desdenhoso de seus valores e regras pode promover.

Basta olhar para a Venezuela, a Polônia, a Hungria, as Filipinas. Aqui, os presidentes têm a sua disposição muitos recursos de poder. Gostaria de estar errada, mas prefiro não pagar para ver. Na disputa que chegará ao fim no domingo quem quer que tema a degradação da democracia entre nós só tem uma escolha.

Maria Herminia Tavares de Almeida – Professora titular aposentada de Ciência Política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha

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