Mourão corrige o subordinado e diz sua própria asneira. Por Reinaldo Azevedo – Heron Cid
Bastidores

Mourão corrige o subordinado e diz sua própria asneira. Por Reinaldo Azevedo

18 de setembro de 2018 às 08h44 Por Heron Cid

Querem que eu diga o quê? Não tem jeito, não! Eles não entendem a democracia e ponto final! Já declarei aqui algumas vezes e reitero: a perversão da verdade é muito pior do que a mentira. A que me refiro? Vamos lá.

No domingo, o candidato do PSL à Presidência, Jair Bolsonaro, disse, numa “live”, transmitida de seu palanque eleitoral instalado no hospital Albert Einstein, que ou ele vence a eleição, ou, então, se estará diante de uma fraude. Em seguida, fez uma indagação aos militares da ativa sobre quem seria o ministro da Defesa e emendou com uma exortação para que participem do processo eleitoral. Sobrou a mensagem oblíqua: as Forças Armadas não podem se conformar com a eventual vitória do PT.

Vou corrigir o candidato: elas até podem não gostar se isso acontecer. Mas vão continuar a cumprir o papel que lhes reserva a Constituição. Ou é golpe. Nesta segunda, Bolsonaro foi desautorizado e corrigido pelo general Hamilton Mourão, também da reserva, seu candidato a vice. Hierarquia militar é hierarquia militar, mesmo quando não se está na ativa. Quando general fala, capitão cala a boca.

E Mourão afirmou a jornalistas, depois de palestra conferida no Secovi (Sindicato da Habitação), em São Paulo, que a fala do titular da chapa não vale. Bem, é melhor que assim seja, não é? Disse: “Vocês têm que relevar um homem que quase morreu há uma semana, fez duas cirurgias. Vamos relevar o que ele disse. Minha posição é (…) quem vencer venceu. Só tenho pena do Brasil se o PT vencer”.

E essa poderia ter sido a contribuição do dia de Mourão ao debate. A democracia ficaria grata. E estaria minorando besteiras que ele próprio andou proferindo por aí não faz tempo. Defendeu, por exemplo, uma Constituinte sem a participação do Congresso. O texto seria feito por uma comissão de notáveis e depois submetida ao povo em referendo. Foi o caminho escolhido pelo tirano Hugo Chávez, por exemplo. Logo depois que Bolsonaro recebeu a facada, no dia 6, o general soltou um enigmático, mas muito claro, “os profissionais da violência somos nós”, como se o ato de um lunático fizesse parte de uma grande conspiração. Numa sabatina de que participou, acenou com a possibilidade de as Forças Armadas intervirem na garantia da lei e da ordem mesmo sem a convocação de um dos Poderes da República. O nome disso? Golpe.

Durante a palestra, no entanto, em que se comportou como o verdadeiro candidato à Presidência — afinal, a hierarquia é um valor importante para os militares, e o general é ele; Bolsonaro é só capitão —, o nosso homem treinado para a guerra resolveu demonstrar o que entende do mundo da política. Referindo-se à diplomacia “Sul-Sul” levada a efeito pelo governo do PT, de que eu também sou crítico em muitos aspectos — basta procurar no arquivo do blog —, disparou: “E aí nos ligamos com toda a mulambada, me perdoem o termo, existente do outro lado do oceano, do lado de cá, que não resultou em nada, só em dívidas que foram contraídas e que nós estamos tomando calote disso aí”.

Bem, do outro lado do Oceano, está a África. O “aqui” de sua fala é a América Latina. O Brasil é o país mais importante da região. Imaginem um governo que olhasse para parceiros e vizinhos como “mulambada”. Os chineses, que certamente têm um pensamento estratégico um pouco mais complexo do que o do general, hoje se espalham nos países africanos, fazendo do continente a nova fronteira de expansão dos negócios.

Mourão, “o presidente-em-chefe” se Bolsonaro for eleito, parece que tem suas próprias noções sobre diplomacia, geopolítica e relações internacionais.

Na palestra dada no Secovi, Hamílton Mourão, vice de Bolsonaro, resolveu refletir também sobre o problema de segurança pública. E meteu os pés pelas mãos. É certo que a desestruturação de famílias facilita o trabalho do crime organizado. Mas o vice de Bolsonaro se referiu assim à questão:
“A partir do momento em que a família é dissociada, surgem os problemas sociais que estamos vivendo. E atacam eminentemente nas áreas carentes, onde não há pai nem avô. É mãe e avó. E, por isso, torna-se realmente uma fábrica de elementos desajustados e que tendem a ingressar nessas narcoquadrilhas que hoje afetam todo nosso país e em particular as nossas grandes cidades.”

Não dá. É inaceitável. O que vocês querem que eu diga? Isto: o número de famílias chefiadas por mulheres mais do que dobrou em uma década e meia. De acordo com estudo elaborado pelos demógrafos Suzana Cavenaghi e José Eustáquio Diniz Alves, coordenado pela Escola Nacional de Seguros, o contingente de lares em que elas tomam as principais decisões saltou de 14,1 milhões, em 2001, para 28,9 milhões em 2015 — avanço de 105%.

Querem outra fonte de dados? Pois não! De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), dos 69,2 milhões de lares brasileiros, 40,5 milhões eram comandados por homens em 2016, queda de 2,37% em relação ao ano anterior, quando pessoas do sexo masculino comandavam 41,5 milhões de lares. Na contramão, os lares chefiados por mulheres vêm crescendo desde 2012: no ano passado, esse grupo chegou a 28,6 milhões de lares, alta de 9,25% em relação ao ano anterior, quando eram 26,25 milhões de famílias.

O general não dispõe de nenhuma evidência, a não ser o preconceito puro e simples, que indique que a criminalidade se deva à ausência de pai e avô, ainda que se possa supor que um casal possa cuidar de uma criança com mais facilidade do que uma pessoa sozinha, já que os esforços podem ser divididos. Uma família chefiada por mulher supõe ao menos duas pessoas: estamos falando, no mínimo, de 52,5 milhões de brasileiros — um quarto da população. O número, por óbvio, é muito maior do que isso.

Volto à tese inicial. A perversão da verdade é a pior forma de mentira. A chamada diplomacia “Sul-Sul” do governo petista foi certamente um erro, mas um líder político de um país que disputa um lugar no concerto internacional não se refere a outras nações como mulambada. A desestruturação das famílias é um fator importante na expansão da criminalidade, mas não se colocam sob suspeição 26,25 milhões de famílias quando não se têm nem evidências nem estudos de que a criminalidade esteja ligada a lares chefiados por mulheres.

Alguém com má vontade com os militares diria que papo de caserna não combina mesmo com política. Não é o meu caso. Não tenho preconceito nenhum. O Exército brasileiro oferece a seus oficiais uma excelente formação. O problema é que o general Mourão, que já se coloca como o verdadeiro candidato à Presidência em lugar de Bolsonaro, decidiu ser um pensador independente, um livre atirador. Acha, por exemplo, que parte dos problemas brasileiros se deve à miscigenação, com destaque para a indolência do índio e a malandragem do negro; não vê por que uma Constituição tenha de ser feita por pessoas eleitas; chama a África e países da América Latina de “mulambada” e atribui à ausência do homem no comando das famílias a expansão do narcotráfico.

Isso não é papo de caserna. Isso é conversa de boteco em que se bebe mal.

O general poderia ter consertado a besteira dita por Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas e pronto.

Acontece que ele tem as suas próprias asneiras a dizer. E, como é, afinal, do topo da cadeia de comando, ainda que na reserva, as suas tolices aspiram a uma forma de pensamento.

A que ponto chegamos!

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