Enfrentar os privilégios. Por Delfim Neto – Heron Cid
Bastidores

Enfrentar os privilégios. Por Delfim Neto

9 de agosto de 2018 às 08h44 Por Heron Cid
Temer durante jantar com base aliada, ano passado

O mundo está mesmo de cabeça para baixo. Um bem apetrechado candidato à Presidência da República que se supõe ser a “verdadeira esquerda” no Brasil definiu solenemente: “Esquerda é quem tem toda a disposição de enfrentar privilégios até as últimas consequências”. Suspeito que a afirmação subsistiria com maior força e credibilidade se substituíssemos “esquerda” por “liberalismo radical”. Por quê?

Porque os “privilégios” estão concentrados em programas:

1. Que não ensinam a pescar, mas apenas a reivindicar o peixe, projetados para transformar o beneficiário num eterno dependente do populismo eleitoral, o que, a longo prazo, desestimula as iniciativas dos cidadãos e acumula custos sociais insuportáveis. A exceção notável é o Bolsa Família, por seu desenho, suas condicionalidades e o relativo controle. É hoje um programa de Estado, mas ainda é usado, oportunisticamente, como argumento eleitoral.

2. Que geraram imensos subsídios sem retorno social, por interesse partidário, que se aceleraram depois de 2009 e produziram o tremendo desastre econômico em que vivemos agora (em 2015, tínhamos 7,4 mil obras públicas paradas!), convenientemente debitado da conta do governo Temer.

3. Que beneficiaram a alta burocracia não eleita que assumiu o controle do Estado em 1988. Hoje, a Câmara Federal tem 130 deputados, 25% do total, funcionários públicos bem focados e ativos que defendem seus interesses sem nenhum pudor, negando o dispositivo moral constante do seu regimento interno. Ademais, organizaram-se e transacionam com outras bancadas corporativistas para bloquear todas as “reformas” que tentam corrigir os direitos por ela “mal” adquiridos, como se viu recentemente.

Ora, esses “privilégios” são o próprio domínio exercido pela tal “esquerda verdadeira”. Logo, é mais do que improvável: é impossível que ela se disponha a eliminar seus próprios “privilégios até as últimas consequências”. Na verdade, tenta, permanentemente, transformá-los em “direitos”. Mas não se esgotam aí os problemas.

Essa rejuvenescida e generosa “esquerda” nos promete a criação de uma sociedade que exaltará as virtudes humanas, que existem por definição, e condenará a inveja, a ostentação, a vaidade e, principalmente, o miserável interesse pessoal que tudo mercantiliza.

Nela haverá plena harmonia entre seus membros e prevalecerá a plena liberdade individual e a plena igualdade. O insuperável problema é que tal promessa dá como resolvido o enigma fundamental do qual ela nem sequer suspeita: como se produzirá a subsistência material de seus membros?

Na demagogia inflamada e generosa, não se encontra a informação de como tal sociedade se auto-organizará para coordenar os “desejos e as preferências” de consumo de milhões de homens livres e a resposta adequada de outros milhões de homens que, também livremente, deverão “escolher” suas atividades produtoras de forma a satisfazê-las.

É interessante indagar como a “injusta, defeituosa e ineficiente sociedade capitalista em que vivemos e que nos constrange” tem resolvido essa questão ao longo de milhares de anos, sustentando a liberdade individual e mitigando as desigualdades. A resposta é: pelo aperfeiçoamento das instituições que chamamos de “mercados”.

Eles não foram inventados. São produto do intercurso natural da divisão do trabalho entre os homens. Ela os especializa e aumenta a sua produtividade. Estão presentes crescentemente na vida do homem desde que ele abandonou o nomadismo, há pouco mais de 10 mil anos, e começou a urbanizar-se, o que lhe deu ainda mais produtividade.

Ficou claro, desde cedo, que a eficiência produtiva dos “mercados” dependia de um Estado capaz de garantir a propriedade privada. Aprendeu-se também que o Estado tinha de ser forte, mas constitucionalmente limitado, para corrigir os inconvenientes distributivos produzidos por ela.

Qual é a alternativa a essa solução? Até hoje não se descobriu nada diferente de um Estado voluntarioso que impõe aquela coordenação. Mas, se é a autoridade que decide, já não há nem plena liberdade nem plena igualdade porque lhes faltam as informações (as mensagens) e os estímulos oferecidos pelas variações dos preços nos mercados livres que coordenam as ofertas com as procuras. 

A História mostra que todas as tentativas (e foram centenas) de organizar a sociedade sem o instituto da propriedade privada, que não é um direito “natural”, mas obra do pragmatismo do homem, fracassaram. Cuba é um exemplo ainda vivo. É isso que nos promete inconscientemente o nosso “esquerdismo infantil”, que mal disfarça o seu autoritarismo.

Carta Capital