A matriz da greve é política. Por Reinaldo Azevedo – Heron Cid
Bastidores

A matriz da greve é política. Por Reinaldo Azevedo

29 de maio de 2018 às 09h55

É claro que podemos  — e devemos se quisermos soluções de longo prazo — pensar nas causas que fazem o Brasil excessivamente dependente de combustível fóssil no transporte de cargas. Do etanol que foi jogado às traças quando começou a produção do pré-sal ao país que, no mais antigamente, abandonou as ferrovias, as variáveis são imensas e deveriam trafegar também em hidrovias que fossem algo além de um improviso ou de uma imposição geográfica. Estamos enfrentando “a contribuição milionária de todos os erros”, como escreveu Oswald de Andrade no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”. Mas ele o dizia em tom afirmativo, acolhedor; referia-se a uma língua que deveria abrigar as contribuições do povo.  Emprego a expressão em outro sentido. Mas ainda fico dentro do manifesto. No texto, Oswald pede “engenheiros em vez de jurisconsultos”, segundo ele “perdidos como chineses na genealogia das ideias.” Ainda se lida mal com a matemática por aqui.

Sim, existem erros que foram se acumulando. E eles fornecem, vamos dizer, o meio ambiente adequado para uma crise colossal. Mas será que está aí o, sem trocadilho, combustível da crise? Não creio. Como sabem os que me acompanham, eu sou um leitor, creio que bom, do Maquiavel de “O Príncipe”. Existe a Fortuna, que é o conjunto de circunstâncias que não são da nossa escolha, como escreveu Karl Marx. Ela abrange esses erros estratégicos, que formam o nosso passivo com o passado. Mas também existe a “Virtù”, que é, de fato, a disposição subjetiva e compreende as faculdades e qualidades individuais. O “Príncipe” ou o “Estadista” surge do que a “Virtù” é capaz de fazer da “Fortuna”. E a arte da política está essencialmente nas disposições individuais.

A fuça da crise que vivemos não foi gerada pelos erros estratégicos cometidos pelo país, seja o de matriz energética, seja o de infraestrutura. Estivessem as instituições em ordem, esses desarranjos, a esta altura, já teriam tido uma solução adequada, com uma resposta também pertinente da opinião pública. Mas estamos no meio de um baguncismo institucional, que faz com que um mosquito seja um boi.

Basta ouvir o discurso estúpido que vem de manipuladores de extrema-direita, mas que encontram ampla aceitação na classe medida e também entre os pobres: a inimiga do Brasil passou a ser a política. E os políticos ditos “tradicionais” são tomados como a fonte primitiva do mal. A clivagem, a divisão, o elemento a nos separar não teria mais matriz ou ideológica. Ao contrário até: em muitos aspectos, militantes de extrema direita e de extrema esquerda concordam em atacar o inimigo comum: o estado democrático e de direito. Esquerdistas acreditam que ele não nos proporciona a necessária justiça contra aqueles que pretendem explorar os desvalidos. E a direta de matiz fascistoide entende que esse tal Estado existe apenas para satisfazer burocratas vagabundos, que não trabalham e gostam de se impor àqueles que realmente tocam esta nação. Quantas vezes vocês já ouviram esse discurso? Ele está por aí hoje em dia, muito especialmente entre os extremistas da mal chamada “greve de caminhoneiros”.

Sim, o país fez escolhas erradas ao longo dos tempos. Mas calma lá! Olhem onde estávamos e vejam bem onde estamos. Olhem o país que Dilma deixou e o comparem, sob qualquer aspecto que se queira, com aquele que Temer vai deixar. Se erros históricos criaram o meio ambiente ideal para um cataclismo, o seu combustível tem a ver com disposições subjetivas, com escolhas políticas que foram e estão sendo feitas — inclusive pela imprensa —, não pela contribuição milionária de todos os erros estratégicos.

Corresponde a subestimar as lições pertinentes da história ignorar a importância que o proselitismo contra as instituições e a ordem democrática exerce na eclosão das crises e na fabricação de desastres. Claro que não parece possível pensar o nazismo, por exemplo, fora do advento do Tratado de Versalhes. Mas e os demais fascismos europeus, com repercussões em todo o mundo, inclusive em terra nativa, que igualmente incendiaram ruas e corpos sem que se pudesse encontrar, vamos dizer, a força-matriz na suposta redenção dos humilhados?

Há quatro anos, sob o pretexto de se combater a corrupção, os políticos, qualquer político, são tratados como escória — e aposto que, neste momento, alguém se perguntou: “E não são mesmo?” —, e a política é relegada como o campo preferencial dos vagabundos. Quando se elege a não-política como a solução dos conflitos, resta apenas a porrada. E é na base da porrada, como se vê, que alguns pretendem impor a sua vontade.

Ou reconhecemos a prevalência do Estado democrático e de direito, que se exerce no erro ou no acerto, ou sobrevém a desordem, que não costuma distinguir… erro de acerto.

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