Ela só queria voar - a história de 'Pisita' – Heron Cid
Crônicas

Ela só queria voar – a história de ‘Pisita’

17 de novembro de 2024 às 07h54 Por Heron Cid
Um pequeno tributo à breve vida da calopsita que em sete dias marcou uma família para sempre

Assim que a viu, o menino de cachos dourados a quis muito para si. As asas de um colorido amarelo e cinza, manchas de sóis em cada face iluminaram os verdes olhos de quem já contava as horas e sonhava – tantas vezes – com a sua chegada.

Na loja, a escolhida e a irmã precisaram se despedir para sempre. Para a difícil escolha, aconselhado o menino em toda sua pureza foi para um cantinho pensar e pedir a Deus um sinal. Voltou com a decisão. No coração do pai ainda tocou o desejo de levar as duas e impedir o trauma da separação. Não deu.

Na família de primeira viagem, a casa se encheu de alegria e cuidados para receber a nova integrante. E se adaptou. Algum pouco requinte da varanda gourmet do pequeno apartamento logo deu lugar a um quintal improvisado e abrigo a um amor de penas macias e bico arredondado. O sonho do menino que apenas queria ter seu pet. Como todos os seus amiguinhos.

Ainda tentou-se um nome, mesmo sem saber ao certo se aquela frágil vida de três meses era ele ou ela. Oficialmente, saiu ‘Pipoc’a, mas o batismo que ficou mesmo veio naturalmente de uma vozinha de dois anos de idade e para quem simplesmente ali estava “Psita”. O seu jeito de chamar calopsita. E ficou!

Ah, como ficou… Ficou pelos cômodos, nos passinhos curtos e amedrontados. Nas refeições tímidas e desconfiadas, na vacilação de subir ao dedo de quem tentava amansá-la, no seu canto, na resistência à gaiola, nas sementes e outros rastros espalhadas pelo porcelanato.

Em uma semana, tudo – surpreendentemente – mudou. Os quatro moradores da casa despertavam e já saíam apressados para ver e ajudar a nova moradora no alvorecer. Na mudança da comida, na troca da água. Ou na singela comtemplação.

Naquele sábado, especialmente, sétimo dia da sua chegada, parecia mais agitada. Bisbilhotava lugares fora do território ofertado, se arriscava mais próximo das pessoas, bicava a sandália e a mão de quem tentava tocá-la. Ora parecia defesa-ataque, ora carinho e interação maladrinha.

Dessa vez e de repente tentava muito voar. Pra lá e pra cá. De asas aparadas, queria ir muito além do limite concedido pelos humanos. Parecia se esforçar para atingir a altura da sua natureza de pássaro livre. A natureza que Deus lhe concebeu. Talvez, quem sabe, para achar a irmã perdida. Ela só queria voar.

E no tamanho que as asas tolhidas permitiam saltava. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Sem parar e sem temer ser o que foi criada para ser. Até ser interrompida pela necessidade da ausência temporária da sua apaixonada plateia. Por prevenção, foi levada de volta à gaiola, onde estaria protegida de acidentes doméstico. Inquieta, não dava sinais de consolo de que aquele era seu lugar. Ela só queria voar.

Na volta de todos para casa, ao abrir da porta, a primeira e instintiva atitude foi procurar pela mais nova alegria do lar. No aproximar da varanda, o choque dos olhares diante da cena desoladora. Um silêncio sem vida, as asinhas inertes presas e feridas nas grades. A imagem de quem se esforçou muito e lutou até o fim para viver o voo que não deu tempo existir. Ela só queria voar.

E o menino, que tanto sonhou com ela, ajoelhou em prantos aos pés de Deus implorou – ingênua e comoventemente – o milagre da ressurreição. Com o rosto banhado de soluço de uma dor inconformada, chorou – como nunca antes – pela sua amiguinha de vida tão fugaz. A“Pisita”, que tanto desejou, continuará colorida nos seus sonhos. Mas, agora, enfim, voando livre nos céus e na memória de um ninho que bastou sete dias para ficar guardado para sempre. Ela só queria voar…E voou para o dedo do seu criador.

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