Um banho de saudades – Heron Cid
Crônicas

Um banho de saudades

29 de janeiro de 2024 às 13h45
O autor do Blog nas ruas da infância molhado de nostalgia (Foto: Felipe Soares)

Desembarquei em Marizópolis, minha República, para sepultar um amigo. Contemporâneo de adolescência, Alex Estrela morreu aos 46 anos de idade. Uma doença degenerativa abreviou sua feliz existência, ao ponto de colocá-lo por anos numa cama, de onde se comunicava apenas por um aparelho decifrador de mensagens a partir do olhar. Fui destinatário de algumas delas, e sempre me emocionei com o conteúdo e a prova de que as verdadeiras amizades superam distâncias e adversidades.

No mesmo dia da despedida em que vi o amigo descer ao túmulo, num dia escaldante do sertão paraibano, a natureza resolveu surpreender. O tempo mudou e sem pedir licença a chuva veio fazer visita antes da noite descortinar suas sombras. Ao ouvir os primeiros pingos na calçada, troquei de roupa em segundos e corri, instintivamente, para fora de casa.

Alegre “como um rio”, pés descalços e chutando poça d’água, repeti o que fazia até cansar nos meus ontem de menino. Deixei os protocolos de lado e as gotas do céu rolarem pelo rosto se misturando às lágrimas de nostalgia brotadas da partida precoce de uma testemunha do meu tempo, companheiro de brincadeiras e sorrisos.

Homem feito e na casa dos meus 40, nem liguei para alguma vergonha possível ou o comentário previsível de quem cruzasse meu caminho. Saí correndo pelo quarteirão com uma cachoeira celestial molhando meus cabelos, o vento batendo nas faces e o coração em disparada. Congelei o olhar a cada passo e nem sei ao certo quem viu a cena ou que julgamento se fez dela.

Pouco importava naquela hora em quem o tempo parou de repente. Ou rebobinou décadas atrás. Apenas brinquei feito criança nos becos do passado e revivi “tudo outra vez”, sentindo de olhos fechados o perfume do chão molhado e ouvindo o assovio da brisa nas telhas e árvores. Pela manhã chorei a morte. À tarde celebrei a vida. Banhado de saudades.

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