Na avenida da vida, o amigo da rua (A Crônica de Domingo) – Heron Cid
Crônicas

Na avenida da vida, o amigo da rua (A Crônica de Domingo)

7 de novembro de 2021 às 11h34

José, 40 anos de vida e 15 dias de pesadelo. O marido de Andréia faz tempo que não a vê. Estão separados. Unidos pela solidão, muita saudade e quase nenhuma notícia.

Ela em Jequié. Ele em João Pessoa. Ela – doce – faz salgados para viver. Ele – adulto – anda vendendo pé de moleque para sobreviver. Pra não pedir, oferece o produto, sabendo que – para o “cliente” – dá no mesmo.

Na dobra da esquina da vida, o encontro daqueles que não se agenda, mas depois se tem certeza: tudo já estava programado.

De Aracajú, sumiu no mundo. Uma fuga! De quem? De si mesmo, dos erros, das escolhas. Toda a história agora está dentro de uma bolsa. Rasgada, como o peito.

Motorista de profissão, violonista por paixão. Como alento, versos de Belchior para dizer que a noite fria ensina a amar mais o dia. No revide de músico, Almir Sater reage. É preciso seguir “tocando em frente”.

No braço direito, a fé marcada na pele e a crença de quem conhece “o caminho”. Homem tatuado pela promessa, o ex-missionário batista peregrina no deserto existencial.

Não há mais mesa. Naquela calçada está faltando ele. E por que não volta pra casa? Que casa? Qualquer uma, de algum irmão, parente… O olhar se perde e vaga sem rumo, a voz cala e a pupila se derrama. “Voltar desse jeito”?

Na nova morada sem endereço nada é bom. Tudo é medo, tensão e solidão. Mas, a indiferença é pior do que a fome, a invisibilidade dói mais do que o frio, a humilhação queima mais do que o sol.

Voltar a ser ouvido e visto de igual para igual, nem que seja por algumas poucas horas, é o fim do túnel relembrando a identidade de gente, com nome e sobrenome europeu, resquício (quem sabe?) da presença francesa na terra Natal (RN).

Na tela, o novo amigo desliza imagens e apresenta a família, a intimidade. A foto da esposa, a reunião dos filhos. Mas, José mesmo não tinha nada a mostrar e nem a retribuir. Sem o luxo do celular, só carrega agora recordações gravadas no álbum do coração.

Andréia ainda o ama. Isso descobriu numa das raras ligações arranjadas de favor. Deus também e isso viu e ouviu bem na frente de seus olhos cansados. Se não existe certeza de como será, já não há dúvidas do que é. De quem é.

Ofegante a esperança suspirou em oração, no chão a autoestima se reergueu em lágrimas, e cambaleante a força se renovou em palavras. José abriu a porta e o sorriso num adeus de mãos firmemente apertadas, prometeu dar notícias, desceu e atravessou a rua. A mesma que nos encontrou, a rua que não nos separa.

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