A crônica que emocionou João – Heron Cid
Bastidores

A crônica que emocionou João

4 de novembro de 2021 às 13h40

O dia amanheceu na Granja Santana. Como faz por hábito no café que convida ao labor, o governador João Azevêdo (Cidadania) fez a leitura matinal do jornal A União, único impresso ainda vivo no cemitério de periódicos da Paraíba.

Um texto em especial acordou sua excelência. Fernando Moura, cronista singular das terras paraibanas, derramou suavemente frases e palavras num “Post ao amanhã”.

Num diálogo imaginário e futurístico com os netos, deitou a projetar o passado. Sim! Moura consegue essa proeza. E o fez tecendo seus fios de imaginação num hoje bem real.

Falava o cronista sobre o Museu da Cidade de João Pessoa, inaugurado neste presente instante na Cidade de Nossa Senhora das Neves, como costuma chamar outro grande, Rubens Nóbrega.

Uma simbiose perfeita de passado, presente e futuro desfiados com a perícia de um mestre na arte de conjugar verbo e carne, ortografia e emoções, físico e transcendente.

A projeção comoveu o leitor e destinatário, justificadamente citado pela decisão de erguer um monumento à memória de uma quatrocentona, renovada para o amanhã, preservada para o ontem e boa demais para agora.

João, mais do que o governador, fez referência ao texto durante a solenidade de inauguração. Tal qual na mesa do café solitário, marejou os olhos e se emocionou. E emocionou quem viu e sentiu.

Post ao amanhã

Fernando Moura

(*) Para João Azevêdo Lins Filho e

Damião Ramos Cavalcanti

Areia, 4 de novembro de 2035

Meus amores,

Vovô não poderá estar com vocês hoje. Não tem como deixar o sítio agora, no comecinho da colheita do caju. Precisam ver como tá tudo colorido, cheiroso, apassarado… A alegria de ver tem a paga da canseira. Uma trabalheira só. Preciso estar aqui, mesmo doidinho pra estar aí com vocês. É assim que é, infelizmente.

Peço não usarem a manjada chantagem emocional, dizendo que prometi e coisa e tal.  Nada disso. Apenas havia dito talvez. Gostaria muito, mas não vai dar. Seria maravilhoso poder celebrar os 450 anos da cidade dos meus netos. Estar ao lado de vocês, nessa data tão sublime e cheia de significados, seria um privilégio oxigenador. Seria.

Curtam, vocês. Contento-me por extensão. Vivenciarei esses instantes com os olhos, corações e teleposts do Meta.

Sei, não é a mesma coisa, mas ficarei feliz em saber que vocês três estarão aí, bicicletando, circulando, cantando, dançando, rodopiando entre a Lagoa e o Cabo Branco, a Bica e a Penha, o ger e os Bancários… Pausando, talvez, nas praças da Paz, da Independência e do Coqueiral… Orando na Basílica, agradecendo no Varadouro, brindando no Baiano… Navegando o Sanhauá, nadando o Jaguaribe, deslizando na Rua do Rio… Saudando as Trincheiras, acordando Manaíra e gritando da Torre… Caminhando entre a Rua da Areia e a Casa da Pólvora… Degustando e bebendo a cidade nas fontes, abrindo um Buraquinho verde no muro descascado da memória.

Façam isso… Por vocês, por mim…

Façam pelos que estiveram, por quem não estará e os que nunca estarão.

Ah, tá bem! “Aí tem!”, vocês devem estar pensando. A desculpa do caju é bem amarelada, puxada à sépia. Não cola. Sabemos…

O lance, netaiada, é que vovô anda meio meloso, mesmo. Feito adolescente abandonado pelo primeiro amor, choramingando pelos cantos das páginas. Nem estava tão assim, confesso. A saudade doída, doida pra apertar a alegria do dia, chegou hoje cedinho, escorregadia, depois do café com tapioca, entre o apito do trem e o ambiente acalorado pelo sorriso de sua avó.

Fui lembrando a data, remoendo fragmentosesquecidos, pronto, comecei a sentir falta de gente como a gente, que gostaria de presenciar tal momento, mas que só poderão estar em espírito, pegando carona em outras retinas, circulando em veias alheias. Comecei a pensar em eternos pessoenses.

Lembrei de Crispim, de Martinho, de Galvão, de dona Creuza, de padre Zé, de Hermano e de Piancó.

Senti falta de Wills, de Cristovam, de Caixa Dágua, de Lúcio Lins e de Marcos Tavares.

Pousaram sem aviso Adylla, Marconi, Carlos Roberto, Vassoura e Rosemberg.

Apareceram Cida, Adalice, Bode Roco, Lena, Tony e Balula.

Grudaram Parrá, Livardo, Zezé e Apito de Ouro.

Iluminei-me de Ariano.

Aí começaram a chegar Virginius, Mocidade, Horácio, Coriolano, Zé Américo, Zé Lins, Juarez e Augusto, entre tantas outras pessoas com quem não convivi, mas que andam impregnados em mim.

Vocês entendem, meus netos, por que não poderei estar aí? Não saberia como transportar tanta gente, neste dia mágico. Tarefa de tal magnitude mereceria cérebro menos corroído. A não ser…

Façam o seguinte, para podermos estar todos juntos, no mesmo momento, numa simbiose temporal inédita e eficaz: passem no Museu da Cidade. Estejam lá às 10 em ponto que, garanto, conseguiremos sincronizar passado, presente e futuro, sob o manto protetor de uma história de 450 anos. Nos (re)encontraremos por lá. É o espaço perfeito, crianças, para essa experiência sensorial. Pensem no espaço como um totem de vibrações atemporais e moléculas eternizadas. Enxerguem o palacete como uma caiçara de Tambaú, uma casinha de conjunto no Mangabeira XX ou uma tapera pendurada no “S”. Sentem nos banquinhos de pedra calcária e se energizem com os fluídos ancestrais. Acessem seus arquivos digitais e voem pra onde quiserem e desejarem, desbravando cada canto e encanto desta cidade que ecoa pelos poros das convivências.

É lá o lugar, pra quem desejar absorver tantos séculos em poucos bytes.

Façam uma chamada de vídeo no terraço “coqueiro”, tendo a praça como fundo. Se Chico, Dyógenes, Juca ou Gonzaga estiverem na hora, botem a moçada na linha. Ativos e inspiradores, saberão alimentá-los de nutrientes lúdicos e factuais. Fizeram isso comigo há 14 anos, quando João Pessoa ganhou sua sala de visita definitiva.

Lembro como se fosse hoje.

Lembro do burburinho dos dias que antecederam. Da euforia, do mutirão, da zoada, da balbúrdia sincronizada do esforço coletivo para vestir elegantemente aquele jovem senhor, que saía de um sono criogênico de quase cem anos.

Lembro das pessoas, das salas com nomes de fruteiras, dos móveis, dos objetos, dos livros, dos jardins, das imagens, dos sons, cheiros e texturas. Lembro dequem fez e de quem fez que fez. Ainda sinto as gargalhadas da meninada, circulando pelo ambiente, impregnado de futuro. Nunca esqueci a alegria estampada nos olhos orgulhosos do povo mais simples. Estavam em casa, a partir daquele dia. Enraizados, amalgamados, estampados no museu.

Por tudo isso, Ian, Antonella e Monalisa, façam como lhes peço. Montem no “MC” a parabólica das convergências quânticas. Tudo junto, no mesmo balaio de sonhos e realizações.

Atravessem as barreiras sem sair de casa.

Beijos remotos.

Assinado: Vovô bobinho e babão.

Ah, sim! Quase esquecia! Venham no próximo final de semana por aqui. Estamos preparando um encontro entre os amigos sobreviventes daqueles dias eletrizantes. Ficaram de vir Nonato e Celinha, William e Liane, Naná e Agnaldo, Lúcia e Carmélio, Helena e Marcos, Ruth e wilfredo, Rui, Osvaldo, Milton, Pedro e Sóter, com as respectivas musas. Sheyla, Zé Carlos, Máximo, Sônia, João de Lima, Guerreiro com o violão, Débora, Tamara, Tiago e Brygida, Tasso e Pâmella, Fuba, Walter, Marcus, Dida, Heleno, Bira, Marjorie, Tel, Olga, Tico, Aranha, Raul, Rubens, Branca, Carlos, Fátima, Ramalho, Jean, Waldir, Hipólito, Fernanda, Rosêmia, Ana, Rosa, Umbelino, Ângela e Gesiel… E alguns outros mais.

João também ficou de aparecer, se a pauta do Senado deixar. Disse que traria Ana, Janete e Marielza. Acredito que venham. Ele deu palavra de professor, como sempre.

A gente se vê. Cheirinhos.

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