Roberto Cabrini e a diferença entre panfletagem e jornalismo – Heron Cid
Opinião

Roberto Cabrini e a diferença entre panfletagem e jornalismo

22 de maio de 2021 às 23h28
Capa do livro de Roberto Cabrini: repórter empresta preciosas lições para as novas gerações

Repórter é a função mais relevante das atividades reservadas ao jornalista. Roberto Cabrini é um dos melhores da história da televisão brasileira.

Se houver alguma dúvida basta ler “No rastro da notícia”, livro no qual o brilhante profissional narra bastidores de grandes, exclusivas e memoráveis reportagens.

É um mergulho no jornalismo. Um repórter de visão social abrangente, um jornalista comprometido a captar o melhor de uma pauta.

Cabrini fez coisas incríveis em nome da obstinação de revelar ao mundo situações de extrema complexidade.

Para retratar a ascensão dos talibãs e da AL-Qaeda no Afeganistão ficou nas mãos de radicais esperando a ordem de execução ou libertação.

Para mostrar a crueldade de Sadam Hussein no Iraque se embrenhou com fome e sede em montanhas ao lado de guerrilheiros no meio do fogo cruzado.

Para procurar brasileiros nas Farcs colombianas foi sequestrado com sua equipe na selva. Para achar o foragido mais procurado do Brasil, PC Farias, fez campana nas ruas de Londres.

Conquistou grandes entrevistas (Ayrton Senna, Fernandinho Beira-Mar, o piloto do voo 254, Ben Jhonson). Uma experiência que sintetizou precioso aprendizado e relevante ensinamento para todos nós jornalistas:

“Aprendi que não existem heróis ou vilões absolutos. O melhor herói tem algo de bandido, e o pior bandido tem algo de herói. O nome disso é: vida real”.

Ao final de seu livro, Roberto Cabrini deixa uma ponderação importante e especialmente muito válida para o jornalismo nesse tenso momento brasileiro, quando somos tentados a trocar nosso papel crítico pela posição de refém de teses e ideologias. Ou torcidas.

“Não podemos cair na armadilha de tentar fazer os outros pensarem como nós (…) Temos que vencer a tentação de apenas desenvolver teses previamente estabelecidas saindo atrás de entrevistados ou situações que se alinhem a raciocínios prévios e desprezando o que possa contrariá-los (…) Não sucumbir à ditadura das redações muitas vezes partidarizadas”.

Praticou isso recentemente em extensa reportagem sobre o confronto na favela do Jacarezinho, no Rio. Venceu a sedução da reportagem ideológica e retratou as duas visões do episódio sangrento. Subiu ao morro e ouviu a comunidade. Desceu e escutou a polícia e a família do militar morto.

Ainda no livro revisado em 2019, ele prossegue com uma mensagem atualíssima:

“Corrupção, desrespeitos de direitos humanos ou preconceitos não pertencem à direita ou à esquerda, a esse ou a àquele segmento. São, na verdade, desvios de caráter inerentes à raça humana. É preciso fugir de maniqueísmos culturais ou simplificações rasas. A meta tem que ser apurar fatos pelo seu mérito, e não de acordo com sua procedência ideológica”.

“É natural o ato de repudiar o diverso em nossa mente, mas é errado não confrontar essa zona de conforto. É cômodo privilegiar aqueles com os quais concordamos, mas é absolutamente necessário abrir espaço também para aqueles dos quais discordamos sob pena de fazermos panfletagem, e não jornalismo”.

Panfletagem e jornalismo. Eis o desafio de nossos dias: separá-los. Pela temperatura atual, podem até se parecer, mas são coisas bem distintas.

Um impõe. O outro esclarece. Um é refém. O outro é livre. Um é atalho. O outro é caminho. Um é paixão. O outro é razão. Um julga. O outro questiona e analisa. Jornalismo é jornalismo. Outra coisa é outra coisa.

Só uma severa, permanente e vigilante autocrítica pode salvar um do perigo do outro. Roberto Cabrini, com sua longa e vitoriosa carreira, prova que é possível.

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