É fácil levar a imprensa —no seu conjunto e sem exceções— a servir de instrumento da fascistização bolsonarista: ofereça a ela alguns acusados de corrupção! Como, com efeito, a política brasileira não é um convento (ou é, mas daqueles do Eça de Queiroz pré-conversão), basta que a Polícia Federal —a pedido do Ministério Público e com a autorização de um juiz— realize algumas operações espetaculosas e pronto! A coisa está feita.
Na coluna passada, escrevi neste espaço: “Eis a PGR a servir de pátio de manobra da sanha de Bolsonaro contra os governadores. A Lava Jato destruidora de instituições —que morreu como projeto de poder de Sergio Moro e dos ‘white blocs’ do MPF— renasce em espírito com Augusto Aras, agora sob os auspícios do bolsonarismo”.
As operações de caça a governadores em razão de irregularidades reais ou supostas envolvendo a compra de respiradores estavam escritas nas estrelas e também nos tuítes, entrevistas e telefonemas ameaçadores da deputada Carla Zambelli (PSL-SP).
É impressionante que essa senhora não seja convocada a prestar esclarecimentos a seus pares. Comporta-se como uma vivandeira da Polícia Federal. Num telefonema que veio a público, de maneira arreganhada, ameaça uma assessora da ex-aliada e hoje desafeta Joice Hasselmann.
O fato de que ambas se mereçam não elimina a evidência de que Carla apela a um órgão de Estado, a PF, no que tem cheiro de chantagem. Em troca de seu convite à interlocutora para a quebra de lealdade, há a oferta de um emprego. No Twitter, anuncia, sem pudor, que o governador de São Paulo pode esperar pela chegada da Polícia Federal. Ela teve a premonição, vocês devem se lembrar, de que Wilson Witzel seria garfado.
Não é sem desconforto e desalento que essa senhora vem parar na minha coluna. A versão literária que eu tinha, até então, de pessoas como Carla apelava até a certo lirismo…
Eis aí. Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello, seu Boneco de Mamulengo Fardado da Saúde —com sua voz de barítono que não sabe o que cantar— não entregaram nem os respiradores nem os kits de UTI prometidos aos estados. Segundo projeções de modelos matemáticos com os quais opera a Casa Branca, tudo o mais constante, o Brasil ultrapassa os EUA em números de mortos no dia 29 de julho. E daí?
Ainda que a Polícia Federal quisesse investigar compras emergenciais feitas pelo Ministério da Saúde, não haveria muito o que apurar, à parte algumas estrepolias com cloroquina. A rigor, a pasta não existe, a não ser pelo esforço de esconder os mortos. Esses valentes são incapazes de entregar respiradores, mas sabem como caçar aqueles que os compram.
Há tempos Bolsonaro havia dado a senha: essa preocupação com a Covid-19 serviria apenas, segundo o pensador, à articulação de esquemas de corrupção. E, obviamente, não descarto que muita safadeza tenha sido feita nesse tempo. O busílis é outro. Os métodos que mais uma vez estão em curso não permitem distinguir o certo do errado, o culpado do inocente ou o malfeito da acusação infundada.
E não permitem porque, uma vez mais, mandaram-se às favas o devido processo legal e os procedimentos mais comezinhos de uma investigação. As operações são desfechadas, e a nós, da imprensa, é fornecida a lista de suspeitas e supostas evidências que não fazem investigados, mas culpados.
A absolutização de quaisquer valores —nem que sejam o bem, o belo e o justo— serve a projetos autoritários se deixamos de lado as regras que organizam o devido processo legal e os direitos garantidos pela Constituição. E, mais uma vez e como sempre, eles estão indo para o lixo. O Brasil é, em parte, governado por vazadores de investigações conduzidas em sigilo.
Sei o que me custou —e custou muito caro!— apontar os arreganhos autoritários da Lava Jato já em 2014, três meses depois de deflagrada a operação. Deu no que deu! Uma nova caçada está em curso. “O fascismo começa caçando tarados”, afirmou Bertolucci em entrevista. E o disse não por apreço aos tarados. Mas por horror ao fascismo.
Não aprendemos nada nem esquecemos nada.
Folha