No seu ensaio sobre o tema, Montaigne faz o elogio dos canibais. Ele achava impróprio chamá-los de “bárbaros”, visto que os europeus também cometiam barbaridades. Para Montaigne, os canibais eram “selvagens”, no sentido de representarem certa superioridade da natureza sobre a cultura europeia, assim como um fruto natural seria melhor do que um modificado pelo cultivo humano. Gosto mais de frutos cultivados, de preferência com grande quantidade de defensivos agrícolas na casca, mas me enterneço com Gilmar. Na minha modesta visão, ele representa o predomínio da natureza selvagem no Brasil do século XXI. O enternecimento é resultado do meu conformismo, devo admitir.
Da mesma forma que a natureza brasileira, Gilmar é indomesticável. Basta uma chuvinha e ele cresce como o nosso mato, luxuriante, pelas fendas do mármore já amarelado de Brasília. É um garantista cuja maior garantia é esperar o tempo certo para partir como um tupinambá vingativo contra o adversário a ser devorado. Montaigne enalteceu os selvagens brasileiros porque lhe contaram que alguns deles, exibidos como seres exóticos, ficaram impressionados com o contraste entre riqueza e pobreza, em Rouen, sob o rei Charles IX. Cinco séculos depois, constata-se que ocorreu mutação. Os nossos selvagens não só aumentam alegremente a distância entre ricos e pobres, como estão prestes a instaurar uma Justiça exótica que admite provas ilegais apenas para salvar corruptos poderosos condenados com abundância de provas legais – o que ofenderia os canibais de Montaigne, que respeitavam estritamente a regra de comer os inimigos, sem mudá-la a depender de qual fosse a tribo perdedora. É algo a ser investigado por geneticistas e antropólogos: será que a mutação obedeceu a determinações exclusivamente naturais ou houve alguma influência da barbaridade cultural dos colonizadores ibéricos? Intrigante.
Por falar em cultura, nos momentos em que Gilmar fala alemão, sinto-me um Hans Staden, apesar de não saber o idioma. Como o aventureiro alemão, fui prisioneiro dos tupinambás. O enternecimento libertou-me. Estou até pensando em mandar gravar o ministro e atribuir o grampo ilegal a uma fonte anônima. Parece que nem precisa de perícia para verificar a autenticidade da peça. A natureza selvagem brasileira poderá, assim, mostrar por inteiro o seu caráter indomável. E todos ficarão igualmente livres para enternecer-se como eu.
Crusoé