Gilmar enternece (por Mario Sabino) – Heron Cid
Bastidores

Gilmar enternece (por Mario Sabino)

16 de junho de 2019 às 13h00
Gilmar Mendes,ministro do STF (Foto: Ze Carlos Barretta - 21.ago.2017/Folhapress)
O ministro do STF, Gilmar Mendes, está mais exuberante do que nunca, depois da divulgação das mensagens roubadas do celular de Deltan Dallagnol. Ele agora afirma a jornalistas que prova ilegal “não necessariamente anula (o seu uso pela Justiça). Porque se amanhã uma pessoa tiver sido alvo de uma condenação, por exemplo, por assassinato, e aí se descobrir por uma prova ilegal que ela não é autor do crime, se diz que em geral essa prova é válida”. A Lava Jato não condenou Lula por assassinato, embora ele nos mate de rir quando afirma a sua honestidade, mas a analogia foi feita e a defesa do condenado captou a mensagem.

Sem caber em si de contentamento, Gilmar declarou a O Globo: “O chefe da Lava Jato não era ninguém mais, ninguém menos do que Moro. O Dallagnol, está provado, é um bobinho. É um bobinho. Quem operava a Lava Jato era o Moro”. E ainda: “Eu acho, por exemplo, que, na condenação do Lula, eles anularam a condenação”.Gilmar anunciou que será retomado no próximo dia 25, na imparcialíssima Segunda Turma do STF, o julgamento do HC da defesa de Lula que pede a suspeição de Sergio Moro no caso do triplex. O momento deve ter sido coincidência. Pelo jeito, o voto de Gilmar já está pronunciado e só falta agora ouvir os seus longos e gritados argumentos. Tem gente que se irrita quando Gilmar começa com as suas perorações. Ou até mesmo com a sua figura. Confesso que me enterneço com ele, assim como o meu amigo Michel de Montaigne, que de vez em quando aparece por aqui, enterneceu-se com os índios canibais do Brasil do século XVI.

No seu ensaio sobre o tema, Montaigne faz o elogio dos canibais. Ele achava impróprio chamá-los de “bárbaros”, visto que os europeus também cometiam barbaridades. Para Montaigne, os canibais eram “selvagens”, no sentido de representarem certa superioridade da natureza sobre a cultura europeia, assim como um fruto natural seria melhor do que um modificado pelo cultivo humano. Gosto mais de frutos cultivados, de preferência com grande quantidade de defensivos agrícolas na casca, mas me enterneço com Gilmar. Na minha modesta visão, ele representa o predomínio da natureza selvagem no Brasil do século XXI. O enternecimento é resultado do meu conformismo, devo admitir.

Da mesma forma que a natureza brasileira, Gilmar é indomesticável. Basta uma chuvinha e ele cresce como o nosso mato, luxuriante, pelas fendas do mármore já amarelado de Brasília. É um garantista cuja maior garantia é esperar o tempo certo para partir como um tupinambá vingativo contra o adversário a ser devorado. Montaigne enalteceu os selvagens brasileiros porque lhe contaram que alguns deles, exibidos como seres exóticos, ficaram impressionados com o contraste entre riqueza e pobreza, em Rouen, sob o rei Charles IX. Cinco séculos depois, constata-se que ocorreu mutação. Os nossos selvagens não só aumentam alegremente a distância entre ricos e pobres, como estão prestes a instaurar uma Justiça exótica que admite provas ilegais apenas para salvar corruptos poderosos condenados com abundância de provas legais  – o que ofenderia os canibais de Montaigne, que respeitavam estritamente a regra de comer os inimigos, sem mudá-la a depender de qual fosse a tribo perdedora. É algo a ser investigado por geneticistas e antropólogos: será que a mutação obedeceu a determinações exclusivamente naturais ou houve alguma influência da barbaridade cultural dos colonizadores ibéricos? Intrigante.

Por falar em cultura, nos momentos em que Gilmar fala alemão, sinto-me um Hans Staden, apesar de não saber o idioma. Como o aventureiro alemão, fui prisioneiro dos tupinambás. O enternecimento libertou-me. Estou até pensando em mandar gravar o ministro e atribuir o grampo ilegal a uma fonte anônima. Parece que nem precisa de perícia para verificar a autenticidade da peça. A natureza selvagem brasileira poderá, assim, mostrar por inteiro o seu caráter indomável. E todos ficarão igualmente livres para enternecer-se como eu.

Crusoé

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