Este carnaval foi das críticas. Por Míriam Leitão – Heron Cid
Bastidores

Este carnaval foi das críticas. Por Míriam Leitão

7 de março de 2019 às 10h30
Estação Primeira de Mangueira (Foto: Divulgação

Este foi um carnaval de críticas ao governo, nos blocos, nas avenidas, nas letras, nos enredos e nas fantasias, nas alegorias e nos bordões. Normal. O carnaval é irreverente, ácido, inclemente. As autoridades são sempre alvo. Era assim no período autoritário, quando em plena Brasília nasceu o bloco “pacotão”, parodiando o pacote de abril do Geisel. E tem sido assim no período democrático. Houve enredos de protesto e sátiras, nas últimas décadas, que se tornaram clássicos. O certo é o governo seguir com seu trabalho nos dias úteis, após as cinzas, e ponto final.

O presidente Jair Bolsonaro iniciou uma nova polêmica desnecessária quando postou seu vídeo criticando o carnaval, e depois fazendo postagem contra artistas, misturando isso com a lei de incentivos à cultura. A cena é escatológica, mais do que obscena. Um perfil com 3,4 milhões de seguidores pode transformar um fato pouco visto numa viralização. O presidente da República dar exposição a uma situação como aquela é um completo nonsense. E a nota divulgada ontem à noite pela Presidência não anula o erro da postagem.

O carnaval é festa tradicional, e no Brasil movimenta a economia, atrai turistas e produz formas variadas de manifestações culturais. Por isso ele é tão diverso. Obviamente não se resume a uma cena. O presidente particularmente pode não gostar do carnaval. Há o grupo, no qual me incluo, que prefere o momento para se recolher e descansar com a família. Mas os que não gostam da folia certamente não ficam procurando motivos para impedir que os foliões façam seu carnaval. É uma escolha, cada um faz a sua. O presidente quer o que ao postar o tal vídeo? Dizer que aquilo foi o carnaval?

Ele pode, como governante, não gostar de uma lei e propor sua revogação ou sua alteração. Todo incentivo, ou política que envolva dinheiro público, deve estar sob constante fiscalização para aperfeiçoamento, atualização, comprovação de que cumpre seu objetivo. Há inúmeros tipos de incentivo no Brasil, o ministro Paulo Guedes prometeu durante a campanha que iria reduzir essas renúncias fiscais. Até agora nada evoluiu. Exceto as declarações contra a Lei Rouanet, o que indica que não é a renúncia fiscal que preocupa o governo, mas as críticas que eventualmente tem recebido de artistas.

O presidente da República, em vez de abrir polêmicas, deveria simplesmente sugerir a mudança que queira fazer nessa ou em qualquer lei. Um governante sério só propõe o fim de uma legislação como essa, que atravessou já vários governos, após o cálculo do custo-benefício, principalmente porque a economia criativa tem também valor intangível e retornos indiretos. Benefícios fiscais para incentivar a arte, em cada uma de suas manifestações, existem em qualquer país do mundo.

Aqui no Rio, no mais tradicional carnaval do Brasil, vive-se o dilema de um prefeito que não gosta de carnaval e não entendeu que administrar a cidade é diferente de impor as suas escolhas pessoais aos munícipes. Marcelo Crivella também tem o direito de propor o fim de qualquer subvenção pública às escolas de samba, mas que isso não seja por motivos da religião que professa, e sim por algum cálculo que tenha feito sobre o retorno ou não desse dinheiro investido. Governar é fazer escolhas, mas que elas não sejam determinadas pelos interesses ou rejeições pessoais do governante.

Mesmo quem se recolheu e viu o carnaval de longe, não pisou em avenida, nem se integrou a bloco percebeu que o tom desse carnaval foi de críticas ao governo Bolsonaro em todos os estilos, sons e cores. E houve também queixas contra dores bem mais antigas, algumas ancestrais. O majestoso desfile da Mangueira com o seu samba-enredo que certamente ficará na história, a mesma que ela se propõe a corrigir incluindo as visões dos que têm sido excluídos da história oficial, é apenas um exemplo. O da Mancha Verde também foi um recontar da história, colocando a centralidade nos negros e na saga da luta contra escravidão. As guerreiras da comissão de frente da Portela falaram com seus rostos. Outros enredos de escolas também trouxeram o tom da crítica como não podia deixar de ser. Primeiro, porque carnaval é carnaval. É a hora de protestar cantando e dançando contra o que se quiser. Segundo, porque o país está com as sequelas de uma campanha eleitoral extremamente polarizada. E terceiro porque, desde que assumiu, o governo tem produzido notícias que se prestam a todo o tipo de paródia.

O Globo

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