Governo e religião. Por Antônio Delfim Neto – Heron Cid
Bastidores

Governo e religião. Por Antônio Delfim Neto

5 de dezembro de 2018 às 13h00
Bolsonaro em oração com Magno Malta antes do primeiro discurso como presidente eleito (Reprodução: Youtube)

Provavelmente, nem a arrogância do mais pretensioso intelectual permita-lhe afirmar que as mais recentes descobertas científicas deem uma resposta aceitável ao problema fundamental que o homem se colocou desde sempre: qual o significado do universo que o cerca e qual o seu papel nele?

Como tinha necessidade intrínseca de encontrá-la, uma vez que a sua própria sobrevivência física dependia da natureza dessa resposta, procurou conforto numa “crença”, numa “religião”, que estabelece a ordem, a estabilidade e a previsibilidade nas relações sociais, produzidas por restrições às ações de cada um, dispostas por um ser divino benevolente que controla a ordem do mundo.

Trata-se de um sentimento profundo e robusto —isto é, de uma fé— que dispensa qualquer prova material porque conforta e dá esperanças ao seu portador. Foi esse o papel da Igreja Católica durante muitos anos, antes de que ela se “intelectualizasse” e se afastasse do povo.

É preciso —sem preconceitos— reconhecer que seu lugar hoje é ocupado pelas igrejas evangélicas, cujo sucesso é a prova material de que estão mais antenadas com as novas realidades.

O conhecimento “científico” (isto é, a ciência) exige o oposto: a dúvida permanente, a busca interminável de recusar o que se supõe conhecido e aceitá-lo, provisoriamente, enquanto não for negado empiricamente. Como disse Popper, “o homem não pode conhecer, mas apenas conjecturar”.

Não há, necessariamente, nenhuma contradição entre essas atitudes. É possível ser, ao mesmo tempo, um bom católico, um honesto protestante pentecostal ou um gentil muçulmano na vida privada (o que exige humildade) e um brilhante cientista da vida pública (orgulhoso de seus feitos), desde que estas esferas continuem separadas.

A confusão entre elas anula as suas virtudes e pode ter consequências desagradáveis.

A ação pública resolve-se no campo da política que procura a solução dos conflitos através do razoável consenso coletivo, do respeito à opinião do “outro” e da recusa a todo abuso de poder que discrimine minorias em resposta ao “pretendido” conhecimento da “vontade da maioria”. O seu instrumento é a construção de uma república democrática sem adjetivos, como a que está implícita na Constituição de 1988.

Um exemplo dessa confusão é a intromissão dos evangélicos nas políticas públicas de gênero. É melhor respeitar e deixar cada um a vida privada que mais o conforta.

Bolsonaro foi eleito por um velho movimento cíclico de “mudar tudo o que está aí”, que se repete de tempos em tempos. Torçamos para que o cumpra e não meta a religião na política pública, o que pode desviá-lo de seu objetivo.

Folha

Comentários