Cientistas políticos chamam de “encruzilhadas críticas” as situações nas quais, em contexto de incerteza, a decisão de protagonistas relevantes define um caminho sem volta, em prejuízo de outros possíveis: uma vez tomado, o caminho limita, por um bom tempo, os passos possíveis dali em diante. Estamos em um desses momentos, e os protagonistas que farão essa escolha crucial são os milhões de eleitores brasileiros.
Por isso, é apropriado especular sobre o rumo que o país poderá tomar, caso se confirme o resultado que as pesquisas de opinião indicam. Ao fazê-lo, porém, toda cautela é pouca: analistas da sociedade e do comportamento humano são treinados para explicar o passado e não dispõem de instrumentos afiados para falar do futuro com segurança.
Colegas cuja integridade pessoal e competência profissional merecem respeito sustentam que a democracia não corre risco, mesmo que vença o candidato de extrema direita. Argumentam que não basta olhar para o discurso e o compromisso dos candidatos com os princípios democráticos; é preciso também levar em conta os antídotos institucionais contra possíveis tendências autoritárias.
Nessa ordem de ideias, supor que a eleição de políticos indiferentes ou avessos aos valores democráticos colocaria em xeque o regime de liberdades equivaleria a ignorar os freios que as instituições são capazes de impor à conduta dos políticos.
A tese aqui é forte: as regras que limitam a vontade dos governantes acabarão por forçá-los à moderação. O raciocínio que vale para os deputados seguidores de Bolsonaro —que estão longe de ser hegemônicos no Legislativo— é mais discutível para um Bolsonaro presidente.
O chefe de governo que for eleito no domingo (28) enfrentará enormes desafios, dois deles prementes para libertar o país da crise econômica e política: alguma reforma fiscal que tire a economia do sufoco e permita crescimento; e a pacificação política, a fim de reduzir a polarização que dilacera a sociedade, ao estimular a incivilidade e a violência.
As mudanças necessárias, no primeiro caso, demandam um presidente com capacidade e disposição de coordenar sua base parlamentar –condição indispensável para o bom funcionamento do presidencialismo de coalizão.
As urnas geraram um Congresso fragmentado como nunca, com pouquíssimas lideranças experientes. O partido do candidato favorito é excepcionalmente diminuto, e as pequenas agremiações de direita e de centro não haverão de engrossar a base governista por mera atração gravitacional. Fazê-los atuar a favor de uma agenda de reformas, qualquer que seja, exigirá do presidente muita capacidade de negociação, muita flexibilidade para ouvir, convencer, acomodar interesses e ceder. Isso pressupõe que o presidente tenha tino político e inclinação para o diálogo, qualidades que Fernando Henrique e Lula possuíam de sobra, faltavam a Collor e Dilma e não caracterizam o candidato da extrema direita.
Ele tampouco parece ter vocação ou vontade de pacificação política. Seu histórico de destempero, insultos e intimidação nem de longe o qualifica para a tarefa.
Suas declarações durante a campanha eleitoral –veja-se a mensagem em vídeo aos apoiadores que se manifestavam em São Paulo, no último domingo, na qual ameaça banir os opositores e mandar Fernando Haddad para a prisão– vêm incentivando a virulência de seus apoiadores mais ferozes nas redes sociais, quando não na vida real. Ao declarar que não tem responsabilidade nem controle sobre o que fazem em seu nome, o candidato lhes dá carta-branca.
O Brasil tem o perverso privilégio de integrar a liga das sociedades mais violentas do mundo. Nas periferias urbanas, nos fundões do país profundo, nas fronteiras onde o agronegócio investe contra as populações indígenas, nos pontos de passagem do comércio controlado pelo crime organizado —enfim, quase por toda parte—, a violência corre solta, mesmo quando a lei a proíbe e seus agentes querem coibi-la. Imagine-se quando os que a praticam se sentirem autorizados por um presidente que durante a campanha eleitoral a enalteceu ao tempo em que encoraja implicitamente a brutalidade dos seus seguidores.
O Brasil da Constituição de 1988 construiu fortes instituições de controle dos governantes e de defesa da liberdade dos cidadãos. A maioria no país é também moderada e não apoia a agenda de extrema direita. Mas não se pode subestimar a erosão da democracia que um governo desdenhoso de seus valores e regras pode promover.
Basta olhar para a Venezuela, a Polônia, a Hungria, as Filipinas. Aqui, os presidentes têm a sua disposição muitos recursos de poder. Gostaria de estar errada, mas prefiro não pagar para ver. Na disputa que chegará ao fim no domingo quem quer que tema a degradação da democracia entre nós só tem uma escolha.
Maria Herminia Tavares de Almeida – Professora titular aposentada de Ciência Política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Folha