Lula volta a 1980 para resistir a 2018. Por Reinaldo Azevedo – Heron Cid
Bastidores

Lula volta a 1980 para resistir a 2018. Por Reinaldo Azevedo

9 de abril de 2018 às 10h51

Já escrevi a primeira parte da análise do discurso feito por Lula pouco antes de ser preso. Segue, agora, a segunda. Já demonstrei a leitura que o petista faz do passado e como ele se tornou vítima de sua própria concepção de mundo, criando as circunstâncias para que personagens singularmente medíocres concorressem para a sua prisão. Refiro-me, no caso, ao plantel do Supremo formado pelo próprio PT. Ainda me fixarei nesse aspecto em outro post. Nesta segunda parte da análise, quero me ater às exortações que Lula fez de olho no futuro.

Assistimos, no sábado, a uma forma particular de transubstanciação. E, convenham, ao longo de sua trajetória, o petista já associou a sua própria história à de Cristo, Tiradentes, Getúlio Vargas — deixando claro, por óbvio, em todas as vezes, que ele pretende sair vivo dos embates, à diferença das referências às quais apela.

Ele não se fez presente no pão e no vinho. Na sua retórica, a comunhão com o povo se dá na esfera das ideias. Afirmou:
“Eu vou cumprir o mandado [de prisão], e vocês vão ter que se transformar, cada um de vocês, vocês não vão mais chamar Chiquinha, Joãozinho, Zezinho, Robertinho, todos vocês, daqui pra frente, vão virar Lula e vão andar por esse país. (…) Eu quero saber quantos dias eles vão pensar que estão me prendendo. E, quanto mais dias eles me deixarem lá, mais Lula vai nascer nesse país, e mais gente vai querer brigar nesse país porque a democracia não tem limite, não tem hora pra gente brigar.”

Na lenda que criou para si mesmo, Lula é o povo, e o povo é Lula.

Que efetividade tem esse discurso hoje? Convenham: ninguém consegue responder a essa pergunta. Que haja ainda muita iniquidade no país, bem, isso é um dado da realidade. Que os pobres tiveram uma sensível melhoria de vida no seu governo, isso também é um dado histórico que os números da economia apontam. “Ah, mas o sistema não tinha saída, já demonstrava pés de barro no fim de seu segundo mandato e chegou ao colapso na gestão Dilma”. Tudo isso é verdade, mas os pobres, quando abrem a geladeira, não debatem macroeconomia. Geralmente costumam buscar o que dar de comer aos filhos microeconômicos…

Por que faço essa observação? Porque há certa direita atrasada no país — vamos ser claros? Temos um gigantesco déficit de direita progressista, não é mesmo? — que insiste em negar o que os mais pobres sabem, vamos dizer, empiricamente. Os 37% de intenções de voto que Lula tinha nas últimas rodadas de pesquisa derivavam, no fim das contas, de um cruzamento da desilusão com a comparação: se todos os políticos são iguais e se ninguém presta, então Lula é melhor porque, sob o seu governo, a nossa vida melhorou”. Sim, a gente pode tentar dar uma aula de macroeconomia para a barriga que ronca, mas as chances de sucesso são bem reduzidas.

Há cretinos que ainda acham que faço essas afirmações em defesa de Lula. Não! Há muito tenho chamado a atenção para o fato de que a demonização da política e de todos os políticos empurra o eleitorado para um beco com poucas saídas.

Sun Tzu e Maquiavel?
Lula não deve ter lido “A arte da Guerra”, de Sun Tzu, essa carne de vaca da estratégia. Também é pouco provável que tenha dedicado algum tempo a “O Príncipe”, de Maquiavel. Obviamente, ele não trouxe os dois autores em sua mente divinal desde o berço, como às vezes pode sugerir sobre si mesmo, em sua imodéstia infinita. Mas uma coisa é inegável: ele tem experiência e foi formado no mundo sindical. O diabo é diabo porque é velho, não necessariamente porque sábio. Ou por outra: experiência faz diferença. E essa experiência, que é um saber, pode passar por intuição. Por que afirmo isso? Vou explicar.

No momento aparentemente mais destrambelhado de seu discurso — e, no que respeita aos valores da democracia, é óbvio que se está diante de um absurdo —, afirmou o petista:
“Vamos fazer definitivamente uma regulação dos meios de comunicação para que o povo não seja vítima das mentiras todo santo dia. Eles têm que saber, que vocês, quem sabe, são até mais inteligentes do que eu, e poderão queimar os pneus que tanto queima, fazer as passeatas que tanto vocês [inaudível], fazer as ocupações no campo e na cidade… Parecia difícil a ocupação de São Bernardo e amanhã vocês vão receber a notícia de que ganharam o terreno que vocês invadiram.”

Está aí o incentivo à ação direta e à ilegalidade. Levada a coisa ao pé da letra pelos militantes, o país pegaria fogo. Ainda que possa haver um ato agressivo aqui e outro ali, é pouco provável que a baderna se generalize como a fala pode sugerir. Lula está, é evidente, articulando o terreno da retórica. Observem que essa retórica remonta àquele PT dos anos 1980, que nasceu naquele mesmo sindicato em que ele foi preso no dia 19 de abril de 1980 e, 38 anos depois, no dia 7 de abril de 2018. A caminho de uma cela, Lula voltava-se para o passado em busca de alguma janela. Avançou:
“Não vão vender a Petrobras. Vamos fazer uma nova Constituinte, vamos revogar a lei do petróleo que eles estão fazendo. Não vamos deixar vender o BNDES, não vamos deixar vender a Caixa Econômica, não vamos deixar destruir o Banco do Brasil, e vamos fortalecer a agricultura familiar que é responsável por 70% do alimento que comemos nesse país.”

Numa primeira mirada, pode-se dizer: o PT não entendeu nada. Está confundindo alhos com bugalhos. Essa, vá lá, “pauta” que vai acima mira mais o governo de Michel Temer e o atual arco de alianças que está no poder do que aqueles que mandaram Lula para a cadeia. Convenham: as forças que o encarceram também estão no encalço dos seus adversários partidários. O PT, a exemplo de fatias importantes da direita — e da direita xucra em particular —, resiste em reconhecer que aquilo a que chamo “Partido da Polícia” não discrimina ninguém. Os mesmos que o prenderam tentaram derrubar Temer duas vezes, com votação unânime dos petistas na Câmara. Ou por outra: quando os “companheiros” disseram “sim” às fantasias de Rodrigo Janot, estavam aplaudindo os carcereiros de Lula.

A vantagem do desespero
Mas, por outro lado, é preciso pensar a questão à luz das particularidades vividas pelo PT. E agora chego ao Maquiavel e ao Sun Tzu intuitivos de Lula — a “intuição” que dá a sabedoria da velhice. Diz o general que é preciso evitar uma guerra com um inimigo reduzido ao desespero porque este está disposto a vencer ou a morrer. Ele é explícito em recomendar que se deixe uma saída ao inimigo acossado, que se lhe franqueie a saída para fugir; aconselha a que uma força superior não se lance de forma encarniçada contra um inimigo inferior. E não faz tais recomendações por piedade, mas por prudência.

Notem que a Lava Jato, ao não reconhecer a Lula nem os direitos legais que tem — e o mesmo se pode dizer sobre o Supremo —, tenta impedir o inimigo acossado e derrotado (afinal, o petista já não será candidato neste ano) de encontrar a rota de fuga. Neste primeiro momento pós-prisão (na verdade, o discurso que a antecede), não há espaço para a acomodação. Tenta-se obstruir a rota de fuga dos que já foram derrotados. Aí, meus caros, em vez de Lula escrever uma “Carta ao Povo Brasileiro”, só lhe resta redigir a convocação para a guerra. Afinal, como lembra o Sun Tzu que Lula não leu, mas intui, a alternativa é morrer. E, numa batalha como a que está sendo travada, seria prudente não dar aos petistas esta vantagem tática: lutar ou morrer. Porque aí tudo passa a ser permitido.

A “guerra”, notou Maquiavel, e sua organização devem ser as únicas preocupações do “Príncipe”. Sim, Lula é hoje um “príncipe” encarcerado, com seus movimentos tolhidos, mas será sempre um erro estúpido fazer pouco caso de sua história e da vinculação que tem com camadas importantes do povo brasileiro.

Encarcerá-lo, na forma dada, enseja a que se continue a alimentar Pantagruel, um ser que tem uma fome descomunal. Para que Lula fique preso, e ainda voltarei ao tema, ele tem de ser apenas o primeiro. A questão é que o estômago da pantagruélica Lava Jato é um poço sem fundo. E não existe no mercado dos homens moralistas com capacidade de resistir a seu apetite.

RedeTV

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