Dois mundos e uma BR no meio – Heron Cid
Crônicas

Dois mundos e uma BR no meio

23 de novembro de 2025 às 18h02 Por Heron Cid

Para mim, a ‘pista’ – como, à época, chamávamos todos a Br-230 – era a linha divisória de dois mundos. O meu era do lado da Igreja Católica para trás e ainda compreendia a Vila Nova, Cemitério, e Pau de Leite.

O outro lado, quase não acessado, era da Praça Francisco Braga e do Beco do Urubu para frente. Nesse, só havia as Queimadas – o maior bairro da minha República de Marizópolis daqueles tempos.

Concentrava minhas andanças no lado de cá. Nas peladas de pé no chão da Rua Ana Rocha, nas caçadas pelas matas dos arredores da Vila Nova, nas descidas pelo lado do Cemitério e no máximo jogando no campo do Coronel Júnior.

Do outro lado, até tinha muitos amigos de time, mas quase nunca botava os pés por lá. A não ser quando tinha jogo no campinho penso de Joquinha ou de Gorgonho, cujo terreno era tanto de terra preta quanto de cascabulho.

A BR-230 era nossa grande avenida. Além dos carros que circulavam feito muriçocas indo e vindo sem parar, nela ou perto dela concentravam-se todas as bodegas (Geraldo Paulino, Dedé de Senhor, Naldo Barbosa, Solon, Carlos Braga), as padarias de Edilson e de Assisinho…

…E as poucas possibilidades de lazer e entretenimento. Da Soverlanche, de Maria de Joaquim de Moça, aos bares de Dedé, Osmam e de Tozinho. Aqui e acolá, aparecia uma lanchonete, uma sorveteria, um caldo de cana ou ‘coisa parecida’.

Na BR, também, desfilavam as moças bonitas da cidade. Por isso mesmo, para a rapaziada de hormônios ouriçados ali estava a maior concentração por metro quadrado de chance do começo de uma paquera.

Tímido que só, pegava a monark verde, deixada aos meus cuidados pelo meu tio Naldinho durante as suas viagens a trabalho em São Paulo, e saía com ela para “a rua”. Acelerava na velocidade máxima no acostamento e voava em pensamentos.

Gastava as horas da noite de cima abaixo serpenteando a parte urbana do asfalto, o único daquele tempo de ruas de barro. Entre uma pedalada e outra, olhos sempre atentos nas meninas e ouvidos abertos para as carretas que roncavam nas orelhas a caminho do sul.

Era pela BR também que passavam, uma vez por ano, a procissão de São Cristóvão, as passeatas dos grandes comícios e os cortejos dos mortos para a encomendação final na missa de corpo presente, do padre Siqueira, ou em celebrações mais simples de Seu Zé Francelino ou Zefinha, guardiões da capela.

Era na BR também que as famílias esperavam ansiosas nas paradas de ônibus a chegada da Progresso e da Gontijo, trazendo os parentes ausentes para matar as saudades nas festas de fim de ano.

Foi nela que um dia subi no ônibus e peguei uma Guanabara para completar os estudos e ganhar a vida na capital. Com uma mala quase sem nada e um coração cheio de sonhos, pela lateral da janela dei meu adeus com as águas de todo o açude São Gonçalo nos olhos.

Por ela, que já foi partida. Por ela, que sempre será o caminho da volta.

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