O ônibus dos estudantes e a viagem no coração do tempo – Heron Cid
Crônicas

O ônibus dos estudantes e a viagem no coração do tempo

7 de setembro de 2025 às 15h49 Por Heron Cid
ônibus dos estudantes de Marizópolis, no final da década de 1990

Na caixinha de som no alto da cabine do motorista as potentes vozes de Walter Cartaxo e Lenilson Guedes nos acompanhavam dando as primeiras notícias da Revista Estadual, na Rádio Tabajara. Eu ainda não sabia porque o noticiário, as ênfases das locuções e a participação dos correspondentes me chamavam tanto atenção. O tempo se encarregou de revelar e deu no que deu.

Mas o dia, começava bem antes das seis da matina, quando estávamos posicionados em cadeiras previamente marcadas pelas mães, pais ou amigos. O sol raiava com o cheiro do café de dona Nuita, minha avó-mãe, despertando a casa número 18 da Ana Rocha. Pulava da cama e já recebia de mainha, dona Marizete, a farda pronta e a bolsa para conferir cadernos e livros.

O ônibus que nos mandava do então distrito de Marizópolis até Sousa ia enlatado. De alunos das escolas aos trabalhadores pegando carona para ganhar seus sustentos. Ia gente pendurada por todo canto pelos corredores, num tempo em que ninguém ainda tinha ouvido falar em ar condicionado em carros daquele porte.

Tudo, porém, se transformava em diversão. A conversa rolava solta entre a meninada e os adultos, enquanto Chico do Ônibus, o nosso veterano motorista, ia fazendo as paradas pelo Túnel, São Gonçalo, Núcleo I, Lagoa Redonda até, enfim, entrar em Sousa, e parar mais outras dezenas de vezes para as descidas nos colégios ou postos de trabalho.

Eu ficava de olho no ritmo das marchas até decorar primeira, segunda…. Passava o caminho todo tentando aprender a “dirigir”e assumia o volante imaginário nas curvas e freava nos quebra-molas. Outro passatempo era ler mentalmente as placas do comércio, fazendo locução silenciosa. Foi meu primeiro exercício do jornalista que mais tarde seria.

Fora os apertos e o desconforto, tinha o lado bom também. Era uma oportunidade de ingênuas paqueras. Interessados providenciavam ‘coincidências’ para sentar lado a lado. Quarenta precisos minutos de olhadinhas, sorrisos de canto de boca e alguma sutil reciprocidade que derretiam os olhos e aceleravam o coração bem acima dos 80 km do motorista. Uma dessas me levou ao cartório e ao primeiro casamento.

A volta era mais difícil que a ida no alvorecer da manhã sertaneja, porque o calor do meio dia ganhava a companhia da agonia da fome pela hora do almoço. Daquelas que quanto mais depressa a gente quer chegar mais cumprido fica o caminho. Caminho  depois encurtado pelo substituto de Chico do Ônibus – ‘Galego’, o filho, tinha menos idade e o pé mais pesado.

De 1990 até 2001, período no qual estudei e fui muito feliz no Colégio Monteiro Lobato, em Sousa, fiz esse animado trajeto de 18 km, diariamente. Até hoje, quando pego a mesma estrada na BR-230 o parabrisa me mandar olhar o retrovisor. E nele revejo o filme daqueles dias que sempre viajam comigo.

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