O rancho dos ciganos – Heron Cid
Crônicas

O rancho dos ciganos

29 de junho de 2025 às 13h27 Por Heron Cid
Imagem de um rancho de ciganos (Reproduzida do Blog do Sávio Almeida - AL)

O alarido começou antes de o sol raiar. Nas calçadas daquela Marizópolis, o comentário já era grande. Ao tomar conhecimento do burburinho, fiz o que todos os meninos estavam fazendo naquela manhã nublada. Corri rápido na direção do rancho dos ciganos.

Antes de chegar lá, vi logo uma pequena multidão perto da casinha onde morava uma família cigana, nos arredores da comunidade. Lá, ainda dava pra ver um rastro de sangue e rede armada de Joaquim – a vítima que dormia na varanda, alvejada à traição.

Um bando de ciganos inimigos, oriundo do Ceará, chegou de carro na madrugada. Por certo, já sabiam que o alvo estava em local de fácil acesso. Quase indefeso e sem chance de reação.

Não tiveram dificuldades de executar a missão. Só não contavam com a rápida rebordosa. Ao ouvir os disparos, os ciganos da cidade conseguiram derrubar um dos inimigos. Os outros fugiram.

Quando cheguei no rancho, avistei Benones, irmão de Benevides, com o braço enfaixado. Sofreu um balaço no tiroteio. Disseram que ele tirou a faca da cintura e a bala do próprio braço.

Ao redor de uma das barracas, além de choro das mulheres e revolta indisfarçável dos homens, um caldeirão no fogo à lenha. A conversa era que estavam assando a orelha do inimigo morto no combate.

Essas e outras histórias – verdadeiras ou não –  povoaram o imaginário de Marizópolis sobre a cigania. A minha casa mesmo, na Ana Rocha número 18, abrigou velório de jovem cigana.

Filha de Valdecir, comadre e eleitora de minha mãe, como foram muitos ciganos na eleição do ano 2.000, Monange teve vida abreviada por doença, na flor dos 15 anos. Durante um dia, aquela face inocente ficou às vistas de todos na área da entrada da casa.

Meu primeiro contato foi ainda criança. Quando espalhou a notícia da chegada dos ciganos ao ainda distrito de Marizópolis, fui conferir de perto. Acamparam no mato, entre a vaquejada e o Instituto Joaquina de Paiva Gadelha.

Era uma atracão à parte, parecia coisa de filme ou mesmo de artistas de circo. Velhos, adultos e crianças debaixo de cabanas feitas com varas e cobertas de palha ou tecido. Burros, jumentos, panelas, fogueiras, roupas diferentes e línguas estranhas. Lembravam um bando de cangaceiros e hipnotizavam olhares curiosos, feito o meu.

Depois, migraram para a Vila Nova, na parte de baixo do Clementão, o nosso arremedo de estádio de futebol que tinha mais pedra do que barro. Sob o comando de Fernando e do velho Miguel, viveram lá até o campo virar um conjunto habitacional e eles também terem suas casas de alvenaria.

As mulheres passavam todos os dias nas portas, pedindo alguma ajuda ou se oferecendo para ler a mão. Madalena, anciã com rosto enrugado e cabelos grisalhos quase na cintura, era uma delas. Tinha um jeito de falar carregado de sotaque e um olhar misterioso e ameaçador.

Os homens andavam quase sempre armados. Alguns comercializavam animais ou viviam de trocas de objetos. A falta de profissão definida colaborava com o preconceito e marginalização da comunidade.

Um episódio trágico, atribuído a um deles, sentenciou um despejo forçado e obrigou a saída para outras regiões. Antes disso, conviveram harmoniosamente com todos da cidade e participavam ativamente da vida pública e das eleições do já emancipado município. Até com candidatos à Câmara de Vereadores.

Já jovem e homem feito, ainda cheguei a sugerir ao cigano Isaías – um dos líderes do grupo que virou político – a pensar e produzir um dicionário com tradução de palavras da língua Calóm. Um remédio para proteger o costume e evitar sua extinção.

Ele até gostou da ideia, mas demonstrou crer que o dialeto passaria de geração em geração, independente da ajuda dos gajões – expressão usada para se dirigir aos estranhos à etnia. Deixou no ar que esse era um segredo, e não coisa para ser revelada.

Só aumentou em mim a aura mística sobre os ciganos e um sentimento, inaugurado naquela manhã sangrenta, que misturava a fumaça do medo e o fogo da fascinação.

Comentários