Crônica de uma tragédia anunciada (Por Renan Paes Félix) – Heron Cid
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Crônica de uma tragédia anunciada (Por Renan Paes Félix)

7 de abril de 2025 às 12h15 Por Heron Cid

Um dia desses eu estava na escala do plantão criminal. No final da tarde recebi uma ligação: houve uma prisão em flagrante e o juiz gostaria de realizar a audiência de custódia imediatamente, pois a presa é uma mulher jovem com uma criança de 6 anos, que não tem com quem ficar. Eu solicitei apenas alguns minutos para ler o auto de prisão em flagrante enquanto me preparava para me conectar na videoconferência (sim, com a criação do juiz das garantias, agora, via de regra, o juiz que realiza a audiência de custódia das prisões da capital é um que trabalha no interior).

A moça, junto com a filha e seu companheiro, estava indo receber uma encomenda nos correios. A Polícia Federal já estava monitorando a entrega em razão de uma informação de inteligência, por suspeita de que o conteúdo postado era ilícito: cédulas de moeda falsa. No momento da abordagem, o homem, ao ver a polícia, foge e deixa a mulher e a criança sozinhas. A polícia analisa a encomenda, confirma que se trata de moeda falsa, e realiza a prisão em flagrante.

Ao ser ouvida, na delegacia, a mulher informa que a encomenda tinha sido solicitada pelo companheiro, com quem ela vivia há poucos meses, e que não tinha família na cidade. O juiz, diante da presença de um menor desamparado, agiliza a realização da audiência de custódia. Se a mulher fosse passar a noite na prisão, a criança teria de ser levada a algum abrigo da cidade. Como o crime de moeda falsa tem pena mínima de 3 anos de reclusão, não houve violência e a moça não tinha antecedentes criminais, a orientação legal é para conceder a liberdade em tais casos. Pedi que, ao menos, fosse estabelecida a obrigação de a moça manter os contatos e endereços atualizados perante a Justiça, para facilitar a comunicação no decorrer da investigação criminal.

Mesmo tendo sido comunicada de que seria libertada imediatamente, a preocupação da moça era apenas uma: o celular. Ela falava ao juiz, de forma insistente, repetidas vezes: “ô amigo, você devolve o meu celular até quarta-feira? Porque não tem b.o. aí não. Como é que fica a minha situação? Como é que eu vou pedir um uber, me deslocar aqui na cidade sem gps?” O celular havia sido apreendido na prisão em flagrante e eu fui contra a liberação imediata, pois se trata de elemento de prova, que deve ser submetido a análise e perícia antes de poder ser devolvido. O juiz, conhecido por ser bastante justo e educado, manteve a apreensão do aparelho e quase perde a paciência com a insistente falta de educação da moça.

Alguns fatos me chamaram a atenção nessa situação: a) a covardia do homem, que sendo possivelmente o maior responsável pelo ato ilícito, foge e deixa para trás a sua companheira e uma criança; b) a renda declarada pela mulher: R$ 950,00 (bolsa família + pé-de-meia); c) a mulher dispensou a ligação para a família por ocasião de sua prisão; d) a falta de respeito com as figuras de autoridade e a demonstração de que estava mais preocupada com o celular do que com o próprio filho; e) a moça, com 21 anos, tem um filho com 6 anos da idade.

Esse contexto retrata em detalhes as trágicas consequências de uma sociedade que despreza os valores da família e deposita as suas esperanças apenas no Estado. É uma tragédia anunciada.

O homem, que deve ser aquele que enfrenta o perigo, que se arrisca para proteger a sua família, é o primeiro a fugir. Covarde, não honra as calças que veste e some no primeiro momento de dificuldade, deixando ao relento a mulher e uma criança que estavam sob seus cuidados e responsabilidade. Homens que terceirizam a culpa e a responsabilidade para outros não são homens, são meninos mimados e frouxos. O menino deve aprender, desde pequeno, alguns valores que são inegociáveis para que uma sociedade prospere: a) homem jamais levanta a mão contra uma mulher; b) homem assume os seus “b.o´s”, custe o que custar; c) homem não terceiriza a responsabilidade, pelo contrário, assume a culpa; d) homem provê para a sua família, e o trabalho honesto é sempre o melhor caminho.

O Estado não é e nem nunca será o provedor universal. Tampouco tem a solução para todos os problemas da humanidade. Enquanto houver a percepção de que o Estado só tem obrigações e os cidadãos só têm direitos, teremos um Governo cada vez mais caro, burocrata, ineficiente, e que não solucionará os problemas da miséria. Nesse caso, a moça tem uma renda de quase R$ 1.000,00 por mês proveniente de benefícios sociais. Em seu tempo livre, ao invés de buscar trabalho digno, deixou-se levar pela busca do dinheiro fácil na criminalidade.

O Estado gasta bilhões de reais por ano para distribuir dinheiro livremente. E é algo louvável, pois a fome e a miséria são circunstâncias que demandam ações urgentes. No entanto, na formatação atual da política pública, há também um desincentivo ao trabalho formal. Milhares de trabalhadores se recusam a assinar a carteira de trabalho para não perder benefícios sociais, enquanto que outros se acomodam ou até vão em busca do dinheiro fácil. Como efeito colateral, aumenta a cada dia o déficit da previdência (uma dívida gigantesca a ser paga pelas próximas gerações), pois o trabalhador informal não paga contribuição social.

A moça, possivelmente, vem de um contexto familiar desajustado. O modo desrespeitoso como ela se dirigiu ao juiz demonstra que ela não aprendeu em casa os valores do respeito ao pai e à mãe. Tornou-se mãe aos 15 anos (sexo sem proteção e sem responsabilidade tem consequências). Não se sabe se o atual companheiro fujão é o pai da criança. Ela não trabalha, vive em outra cidade que não a sua cidade de origem e recusou-se expressamente a entrar em contato com qualquer pessoa de sua família quando foi presa. Ora, imagine-se sozinho, na rua, em uma situação de urgência, prisão, vida ou morte. Alguém diz: você quer ligar para alguém? O normal seria ter um pai, mãe, tio, tia, avô, primo, qualquer pessoa a quem recorrer. Se você não tem ninguém a quem recorrer em uma situação de urgência, provavelmente está diante de uma tragédia familiar. A família é – e sempre será – a base da sociedade. Nações prósperas possuem famílias fortes, onde um ajuda o outro em situações de necessidade.

Naquele momento de urgência, o único recurso que a moça queria era, talvez, a sua melhor companhia: o celular. Vivemos uma pandemia digital. Um vício de rolar a tela como se não houvesse amanhã. Perdem-se horas com o aparelho preso à mão. As pessoas desenvolvem técnicas para almoçar com uma mão só, enquanto a outra mão gira a tela em busca do próximo vídeo. Horas e horas de produtividade são perdidas para saciar a busca pela nova trend ou pelo meme atual. Como consequência, as pessoas não conseguem mais concentrar-se em executar uma tarefa complexa por mais de meia hora. Sentar-se à mesa em família para desfrutar de uma refeição e da companhia dos parentes e amigos é cada vez mais raro.

Em suma: famílias desajustadas geram problemas criminais para o Estado. E o Estado não tem o poder mágico de resolver esses problemas. Precisamos voltar aos marcos antigos, aos valores dos nossos avós: ensinar às novas gerações como um homem de verdade deve se portar e a importância de respeitar pai e mãe já é um bom começo.

*Renan Paes Felix – Procurador da República. Mestre em Direito.

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