Quem foi o maior de todos os grandes parceiros musicais de Luiz Gonzaga? Humberto Teixeira, autor de Asa Branca, o hino do Nordeste, alguém arriscaria, na bucha. Não erraria, porque Humberto foi um gigante. Mas é uma resposta difícil, porque o Rei do Baião sempre esteve acompanhado de celebridades, como Onildo Almeida, autor da Feira de Caruaru, e João Silva, o arcoverdense de Pagode Russo.
Os gonzaguianos, estudiosos da obra de Luiz Gonzaga, são mais ousados. Sem deixar de enaltecer cada um dos monstros sagrados, fazem uma deferência especial a José Dantas de Souza Filho, que se imortalizou como Zé Dantas, o Doutor do Baião, porque era médico e sem a bata, um boêmio. Tocava violão, era apaixonado por música e pelo seu Sertão.
Zé Dantas nasceu em Carnaíba, nas barrancas do Rio Pajeú, cidade que todos os anos celebra seu filho mais ilustre com um festival musical. Ali, Zé Dantas viveu sua infância e na adolescência virou um profundo conhecedor das músicas do Lua, que escutava através das rádios e dos discos.
Certo dia, o jovem médico furou o cerco da segurança do Grande Hotel, no Recife, e bateu na porta do quarto onde estava hospedado Luiz Gonzaga. Quando o atendeu, o cantor foi saudado com um aboio. Em seguida, Zé Dantas disse que tinha umas “musiquinhas” para mostrar, e cantou algumas, entre elas o baião “No resfolego da sanfona”.
Luiz adorou e disse que gravaria – o que de fato fez, em novembro de 1949. O disco RCA Victor 80-0643, lançado em junho de 1950, trazia a primeira música da parceria que entraria para a história com o título: “Vem, morena”. Mas Zé Dantas, no primeiro encontro, havia implorado para que, caso Luiz gravasse alguma de suas composições, não colocasse seu nome no disco, para não entrar em mais atritos com o pai, o fazendeiro José de Sousa Dantas, mais conhecido como o Coronel Zeca.
Seu pai foi prefeito de Flores, cidade vizinha a Carnaíba, e não iria aprovar seu filho metido com esse negócio de artista. Gonzaga ouviu o pedido, mas não acatou. No rótulo da primeira gravação de “Vem, morena” saiu registrada, pela primeira vez, a parceria Luiz Gonzaga-Zédantas (seu nome aparecia assim nos selos dos discos de 78 rotações da RCA Victor, grafia respeitada por diversos periódicos da época).
Quando o disco foi lançado, Zé Dantas se encontrava no Rio de Janeiro, médico residente de obstetrícia no Hospital dos Servidores. Não demorou muito para perceber que o direito autoral que recebeu era muito maior do que aquela mesada que seu pai mandava na época da faculdade e resolveu então assumir de vez suas composições.
Pernambucano do Recife, mas já atuando no Rio, o jornalista Antônio Maria, na sua coluna em “O Jornal” de 12/03/1950, escreveu sobre um sarau num apartamento da Urca para recepcionar Zé Dantas, seu recém-chegado conterrâneo. Participaram do evento Pixinguinha, Benedito Lacerda, Almirante, Herivelto Martins, Haroldo Barbosa, Humberto Teixeira e, claro, Luiz Gonzaga, de sanfona a tiracolo, entoando várias de suas canções.
Antônio Maria afirmava ao final do texto: “Enfim, uma noite muito gostosa. Zédantas está aí e poderá ser a sensação desta época meio parada do rádio”. De fato, só em 1950 a dupla Gonzaga-Zé Dantas lançou – quase sempre em discos do Rei do Baião – nove músicas, entre elas os clássicos “Vem, morena”, “A dança da moda”, “Forró de Mané Vito”, “Cintura fina”, “Derramaro o gai” (corruptela de “Derramaram o gás”, na voz dos Quatro Ases e Um Coringa) e “A volta da asa branca”, retomando o tema da “Asa branca” lançada em 1947 por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, outra parceria-chave da música brasileira.
Sobre esta época, narra Dominique Dreyfus, biógrafa de Luiz Gonzaga: “Parecia que Humberto Teixeira e Zé Dantas estavam rivalizando em talento e genialidade, e, entre os dois, Luiz Gonzaga orquestrava o festival de obras-primas” (em “Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga”. São Paulo, Ed. 34, 1996, página 144).
No início de 1951, Teixeira e Dantas criaram e produziram uma série radiofônica na rádio Mayrink Veiga (PRA-9), “No mundo do baião”, onde este último dava vazão a seu lado folclorista e contava causos diversos. Mas os temperamentos dele e de Humberto não davam “liga”.
Gonzaga ficava ali no meio, tentando “harmonizar os dois” (como diria mais tarde para sua biógrafa). Até fizeram um baião juntos, “Piririm”, mas no fim das contas nunca falaram a mesma língua. Mesmo assim, o programa fez sucesso e durou o ano inteiro. Na Mayrink, Zé Dantas chegou a assumir o cargo de diretor do Departamento de Folclore, porque, além de médico e poeta, era um grande folclorista.
Com o cearense Humberto, Gonzaga havia formatado o baião que trouxera do seu pé-de-serra, transformando-o num ritmo mais urbano, sem deixar de lado a temática sertaneja. Com Zé Dantas, essa temática se aprofundou ainda mais. Com o fim da dupla Gonzaga-Teixeira em 1952, a parceria de Luiz com seu conterrâneo engrenou, ao mesmo tempo em que o tripé sanfona-zabumba-triângulo passava a ditar os acompanhamentos de suas músicas.
Entre 1951 e 1953, foram várias gravações, destacando-se “O forró do Quelemente” (corruptela de “Clemente”) – também conhecido como “Xote miudinho” – e “Sabiá” em 1951; “Imbalança” e “São João na roça” em 1952; em 1953 teve “O xote das meninas” e “A letra i”, feita para homenagear a noiva de Zé Dantas, Yolanda, cujo nome curiosamente começava com “y” – com quem ele se casaria no ano seguinte.
Dona Yolanda também foi inspiradora de outras músicas, como “Sabiá”, e com quem Dantas teve três filhos. Ela faleceu em janeiro de 2017, aos 86 anos. Além das já citadas, o rei lançou em 1953 três dos mais apaixonantes baiões da dupla: “Algodão”, “ABC do sertão” e o petardo “Vozes da seca”.
“Algodão” fala do “ouro branco” que “tanto enriquece o país” e do trabalhador que, para plantá-lo, “tem que ser forte, robusto, valente ou nascer no sertão / Tem que suar muito pra ganhar o pão, que a coisa lá não é brinquedo não”.
ABC do sertão ensinava o alfabeto da maneira bem particular que se ouvia no Nordeste em épocas passadas: “Lá no meu sertão, pro caboclo ler tem que aprender um outro ABC / O J é ji, o L é lê, o S é si mas o R tem nome de rê”. Arrematava com a tomada da “lição” (do jeito que meu avô paraibano me ensinava quando eu era criança): “A bê cê dê fê guê lê mê nê pê quê rê tê vê e zê”.
A composição mais importante que a dupla fez neste período foi um grito de alerta à famigerada “indústria da seca”. Em 1953, o Nordeste conheceu uma de suas mais terríveis estiagens, que matou muita gente de fome. Foram lançadas então várias músicas sobre o tema, cinco delas apenas no mês de maio: “Ajuda teu irmão”, apelo de Humberto Teixeira na voz da Rainha do Baião, Carmélia Alves, com o Trio Melodia; o contundente disco de Luiz Vieira, o Príncipe do Baião, contendo a prosa “Se eu pudesse falar” e “A fome no Nordeste”; “Baião de São Pedro”, de Wilson Batista e Alberto Rego, por Emilinha Borba; “Pedido a São João”, de Zé e Zilda Gonçalves, pelos Vocalistas Tropicais; e, pelos Quatro Ases e Um Coringa, “Vozes da seca” (de Gonzaga e Dantas, que também seria gravada pelo primeiro naquele ano).
Nela, Zé Dantas faz uma severa crítica ao poder público: “Seu dotô, os nordestinos têm muita gratidão pelo auxílio dos sulistas nesta seca do sertão / Mas dotô, uma esmola para um homem que é são / Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”.
Recado certeiro, direto: o povo podia arregaçar as mangas e ajudar, faltava apenas o empurrão dos doutores políticos. A música apontava um caminho para quem quisesse escutar – ao que parece, os ouvidos continuam moucos: “Dê serviço a nosso povo, encha os rios de barragem / Dê comida a preço bom, não esqueça a açudagem / Livre assim nós da esmola, que no fim dessa estiagem lhe pagamo inté os juros sem gastar nossa coragem / Se o dotô fizer assim, salva o povo do sertão / Quando um dia a chuva vir, que riqueza pra nação!…”.
Com Zé Dantas, música e letra geralmente caminhavam juntas. Em certos casos, Luiz Gonzaga efetivamente participava, dando o tema e indicando o ritmo na sanfona. Em outros, havia um acordo tácito com Gonzaga, que acabava incluído na parceria – não que precisasse deste expediente: exímio cantor e instrumentista, era também compositor, embora, em muitos casos, como ele mesmo dizia, fazia o “monstro” e entregava ao parceiro, ou seja, dava o mote, entrava com a base, o ritmo, a ideia, o outro burilava, fazia a letra e dava corpo, depois Gonzaga “vestia” e finalizava a canção.
Na emblemática “Acauã”, lançada em 1952 por por Zé Dantas em parceria com José Tobias – Gonzaga interpretou magistralmente, criando um diálogo vocal inesquecível com o pássaro. Quase 20 anos mais tarde, Gilberto Gil e Gal Costa apresentariam uma versão eletrizante de “Acauã” num show em Londres, em novembro de 1971.
A produção Gonzaga-Zé Dantas continuou firme na década de 1950, gerando outros clássicos como “Noites brasileiras” – um hino das festas juninas –, “Paulo Afonso” – homenagem à hidrelétrica inaugurada em 1955 –, “Riacho do Navio” – repaginada e transformada em sucesso carnavalesco pelo grupo Chiclete com Banana em 1987 – e “Siri jogando bola” – primeira menção à Coca-Cola numa música brasileira, 10 anos antes de Caetano tomar o refrigerante em “Alegria, alegria” (1967).
Sem parceiros, Zé Dantas também brilhou com “Forró em Caruaru”, grande sucesso na voz de Jackson do Pandeiro, “Farinhada”, que estourou com Ivon Curi, e as bem-humoradas “O delegado no coco” – registrada em disco pelo Rei do Baião – e “Nós num have”, gozação com o recém-criado rock’n’roll, que teve como intérprete Catulo de Paula.
Ao fim desta década, uma das parcerias mais importantes da MPB tinha esfriado: Gonzaga viajava bastante, Zé Dantas estava compondo sozinho e sendo gravado por vários artistas. Em 1959 foi lançado pela RCA Victor o LP “Luiz Gonzaga canta seus sucessos com Zé Dantas”, onde o primeiro fazia uma releitura das principais composições da dupla e o segundo, em texto publicado na contracapa, relembrava seu primeiro encontro com o rei Luiz e comentava faixa por faixa.
Entre 1960 e 1961, Gonzaga ainda iria gravar mais duas do ex-parceiro: “São João no arraiá” e “Pisa no pilão”. No Carnaval de 1961, em Miguel Pereira (RJ), na fazenda de Luiz Gonzaga, Zé Dantas sofreu um acidente, rompendo o tendão do pé. As dores desta lesão – nunca curada totalmente – somaram-se às que sentia na coluna vertebral. Por conta disso, chegava a ingerir três comprimidos de cortisona por dia, o que acabou comprometendo o funcionamento dos rins.
Pouco mais de um ano após o acidente acabou falecendo no Rio de Janeiro de insuficiência renal, em 11 de março de 1962, menos de um mês após completar 41 anos, sem realizar o sonho de lançar um disco como cantor. Enterrado no Recife, foi pranteado em verso e música por Antônio Barros (“Homenagem a Zédantas”, 1962) e por Onildo Almeida (“Zédantas”, gravada por seu autor em 1962 e por Luiz Gonzaga em 1963).
Na letra desta última, um lindo e sentido baião, é lembrado três vezes como “o poeta”. Que realmente foi, e dos bons – mas limitá-lo à função de poeta ou letrista é esconder sua verdadeira condição de compositor popular, excelente melodista e um cronista atento do seu povo sertanejo.
Várias de suas músicas não registradas em discos de 78 rotações continuaram a ser gravadas nos anos seguintes, como “Balança a rede”, “Forró de Zé Antão”, “Adeus, Iracema” (esta em parceria com Gonzaga) e a deliciosa prosa “Samarica parteira”, todas por Luiz Gonzaga, e “O bom que o coco tem”, por Marinês.
Curiosamente, no reino do baião – o Rei Luiz, a Rainha Carmélia Alves, o Príncipe Luiz Vieira, a Princesinha Claudette Soares, o Barão Jair Alves, além do Doutor do Baião, Humberto Teixeira, e da Rainha do Xaxado, Marinês –, o outro doutor, Zé Dantas, inexplicavelmente, acabou sem coroa, mas não sem realeza.
Suas músicas continuam por aí, na voz do povo, na arte de sua neta, a cantora Marina Elali – que lançou em 2013 o CD e DVD “Duetos – Homenagem a Luiz Gonzaga e Zé Dantas”, um tributo à obra do avô materno.
Blog do Magno Martins