Michelle Ramalho, a força da mulher no futebol, "sem filtros" – Heron Cid
Opinião

Michelle Ramalho, a força da mulher no futebol, “sem filtros”

11 de setembro de 2024 às 19h34 Por Heron Cid
Presença de Michelle Ramalho na CBF tira mulher da arquibancada para o centro do campo das grandes decisões

Nada é mais convincente do que a autenticidade. Michelle Ramalho, presidente da Federação Paraibana de Futebol, consegue ser original numa quadra histórica marcada pelas artificialidades e comportamentos enlatados. Em uma hora de entrevista ao autor do Blog, na Hora H, da TV Manaíra, a advogada foi 100% ela própria. Na espontaneidade das palavras e na coragem das declarações.

A única presidente de federação de futebol do país surpreendeu ao dizer que, diferente do que todos gostariam de ouvir, não tem dificuldades de exercer seu papel em meio a 26 homens sentados à mesa na Confederação Brasileira.

Defendeu o papel das mulheres, abdicou de qualquer posição de vítima, rejeitou rótulos e não calculou palavras quando disse na lata: “Não sou feminista, mas também não sou machista”. Foi direta ao admitir e lamentar lances de preconceito também praticados por mulheres. Talvez maior do que de homens.

Ao comentar estigmas atirados contra ela por uma reportagem de um jornal nacional usando sua frequência em festas e camarotes, deu de ombros: “Se é baladeira o nome que querem dar, sou baladeira sim, não tem problema”. Da mesma forma que a jovem mãe de um jovem de 22 anos, se derreteu: “Sou mãezona sim!”. Ou como a advogada solteira reportou, sem constrangimento, que não tá nem aí para o  clássico “gostosa” ouvido com frequência quando entra no gramado para trabalhar.

“Isso, sinceramente, não incomoda”, minimiza. O entrevistador insiste: “Não te ofende”? A resposta dela, sem pestanejar: “A gente sabe como é torcedor de futebol. Imagine se um juiz fosse se incomodar com palavrões”…

Na conversa, Michelle contou os bastidores da intensa missão de chefiar a delegação da seleção feminina de futebol nas Olímpias de Paris. Confessou que, apesar de apreciadora de vinho, sequer teve tempo de tomar uma taça em Bordeaux, região vinícola onde a seleção se hospedou. Confessou mais. Nem ao menos conseguiu tirar uma singela selfie na icônica Torre Eiffel.

Ela projetou que Copa do Mundo Feminina, a ser sediada no Brasil em 2026, fruto de articulação da qual participou, abrirá um campo de oportunidades para as brasileiras no futebol. Assim como a sua própria respeitada presença no universo da gestão do futebol já driblou preconceitos e fez o golaço de transferir a mulher paraibana do lugar escondido da arquibancada para o centro do campo das grandes decisões.

Deu pra fazer amizade e relações com as meninas da Seleção durante as Olimpíadas?

Muita gente pensa que nas Olimpíadas passeando. Nada disso. Teve viagens ao interior que durou nove horas de trem. Muito cansativo. De três em três dias tinha jogo. Eu estive em Bordoux duas vezes e não deu tempo tomar nenhuma taça de vinho. Não deu tempo visitar sequer a Torre (Eifel). Foi uma experiência fantástica. Eu levei uma malinha de roupa, com algumas peças, e eu não consegui usar nenhuma peça. Eu estava fardada com as meninas.

E Marta?

Eu tenho um carinho enorme pela Marta. Eu já estive com ela quando assumi uma delegação na Austrália. Eu tenho carinho enorme pela pessoa e profissional. Marta é uma grande líder. A gente vê o carinho e o amor pela seleção.  Elas me chamavam de chefinha. Quando a gente ganhou da França, eu saí com a roupa pelo avesso. Um dos momentos que mais me comoveu foi a suspensão da Marta, que ficou dois jogos de fora. Ela ficou no camarote assistindo e eu via aquela pessoa jogando, ela gritava e as meninas olhavam. Ela tem um comando fantástico. Ela conseguia passar aquela energia.

Era só chefinha e doce de coco ou também puxava a orelha?

A chefinha também era um pouco de coaching. quando elas estavam pra baixo, eu dava palavras emocionais, a gente sabe que o emocional é muito importante. A parte motivacional eu sempre chegava junto. O presidente da CBF esteve presente em todos os jogos, visto que alguns pleitos foram feitos e realizados. A CBF permitiu dois familiares de cada jogadora na partida da final. E fez a diferença.

O que foi determinante para o Brasil ganhar a sede da Copa do Mundo Feminina?

Feminino passou pela decisão política do governo federal. A decisão aconteceu na Tailância, .Destacou o papel do ministro Fufuca e do presidente da CBF, Ednaldo. Foi importante o presidente ter me levado, porque sou apenas uma das três dirigentes mulheres do mundo em federações. O governo está disponibilizando toda a estrutura.

Quais portas que se abrem com a Copa do Mundo Feminina?

Eu saí de lá muito emocionada. Existe um parâmetro de futebol feminino e antes e a partir de hoje. Será um grande marco o Brasil sediar essa Copa. O futebol feminino terá outro patamar. Inediatamente, a Paraíba vai sediar no nosso campeonato, conseguimos colocar onze equipes, algo nunca vista. Já começou o fomento. E com certeza se multiplicará por outras federações. O grande desejo é ganhar essa Copa no Brasil.

Quando poderemos ver meninas jogando desde cedo nas escolinhas e em campos de periferia?

O futebol feminino é extremamente qualificado. Infelizmente nós estamos atrasados desde a época da proibição. As mulheres foram proibidas por 50 anos de jogar, desde o governo Getúlio Vargas. Nesses 50 anos, o futebol masculino estava se desenvolvendo e evoluindo. A gente vê um pouco de discrepância, mas a gente tem que balizar com esses 50 anos de diferença.

Qual seu olhar sobre a inserção de mulheres jornalistas na cobertura esportiva?

Assim como eu sou responsável como a única mulher presidente de federação, elas também estão iniciando e abrindo portas. Nós temos uma responsabilidade muito grande de abrir portas para que outras venham. Na final da segunda divisão do ano retrasado, a gente tinha dois times com mulheres presidentes e uma árbitra Fifa, uma presidente da federação.

O que teve driblar nesse universo tão masculino do futebol?

Não foi tão difícil. Eu sou mulher, mas sou antes de mais nada paraibana e paraibana não é qualquer uma. Sabe se impor e sabe se distanciar. Uma das coisas que procurei foi me qualificar. Quando a gente tem qualificação, entende do que está falando, demonstra conhecimento, as pessoas já começam a respeitar. Eu tenho um currículo que muitos homens não tem. Eu só não fui presidente de clube. Eu já circulei em diversos campos e sempre estou me reciclando em cursos e isso me gabarita para quando eu estou em reuniões com os 27 presidentes. Minha arma é o conhecimento. Eu falo, eu provo, eu convenço. As mulheres precisam ser mais qualificadas do que os homens.

Já sentiu alguma tentativa de desprezar o seu papel por conta do seu gênero?

Já teve uma situação bem inusitada. Eu senti que isso estaria acontecendo, mas eu de prontidão, eu me reuniu com as pessoas que estavam fazendo isso e soube me impor, mostrei que elas estavam erradas. E se continuasse nesse caminho a gente iria dar publicidade do que estava acontecendo. A importância de saber o que está fazendo, saber do seu limite e seus valores. E saber colocar o nome.

O que estava acontecendo, assédio ou tentativa de desmerecer o trabalho?

Tentativa de descredibilização. Querendo diminuir o meu papel por ser mulher. Por isso que a gente está sempre procurando se qualificar. Que a gente não é apenas uma carinha bonita que está ali desfilando. O que eu sinto do machismo é que os homens não precisam se preocupar tanto quanto as mulheres. As mulheres podem chegar onde querem mas dá mais trabalho.

A senhora é feminista?

Não. Não sou feminista, mas também não sou machista. É importante algumas políticas de cotas, mas infelizmente tem que ter a política de cotas. O ideal é que não tivesse, porque, de certa forma, acaba diminuindo as mulheres, porque as mulheres precisam de uma cota para poder ocupar seus espaços. Mas no primeiro momento é necessária essa política sim, acredito que seja importante, mas de certa forma, eu sempre consegui meus espaços, tanto na OAB, quanto no futebol, sem nenhuma cota, então as mulheres podem chegar – com políticas ou sem políticas – onde elas quiserem.

De que forma sua presença feminina pode estimular a CBF ter outro olhar nesses espaços de gestão?

Eu sei da responsabilidade que carrego de abrir portas. Por isso, eu falar que é um ambiente machista eu não estou ajudando as mulheres. Se eu quero ajudar eu tenho que falar das coisas boas que tem no futebol. E as mulheres podem conquistar esses espaços. O presidente da CBF já está demonstrando essa sensibilidade. A seleção feminina se classificou nas Olímpiadas, e a seleção masculina não. É uma promessa do presidente Ednaldo, de valorização, que já vem sendo cumprida. As coisas estão acontecendo no seu tempo. Chegaremos a um patamar que nunca esteve.

A sua adesão ao projeto “Antes que aconteça” passa que mensagem?

Eu vi a importância de divulgar esse projeto. É muito importante abraçar todo os projetos sociais que possam vir ajudar as mulheres e contra o racismo. A federação tem a função de dar visibilidade a esses projetos sérios.

Já percebeu ou sentiu um preconceito ou estranheza das próprias mulheres?

Eu vejo muito mais de mulheres do que homens.

Por que?

É um pouco de preconceito, não são apenas das mulheres, mas do jornalismo.

Por exemplo?

Um repórter chegar e dizer: “Nossa uma mulher. E uma mulher feminina”. Comentário que não tem nada a ver.

Qual sua reação?

Eu não tenho o que dizer. Tem certos comentários que é melhor calar. Já teve casos de reportagens de grande circulação (cita o caso de reportagem do jornal Extra).

Você viu preconceito do jornal?

Acho que faz parte do estilo do jornal. Mas a manchete é pra causar impacto. Mas não me incomoda. Diz que sou baladeira, e quem não vai para um camarote. Se é baladeira o nome que querem dar, sou baladeira sim, não tem problema. Mãezona mesmo, tenho um filho de 18 anos e até hoje o chamo de bebê. Mas na reportagem ele diz que é mulher, vive arrumando as unhas, então tem umas alfinetadas, mas não me incomoda. Me incomodaria se me difamasse. Difamar para mim é dizer que eu era corrupta ou que estava conversando com árbitro. Aí se fizer isso vai ter processo, porque não admito. Na reportagem diz que outro dia estavam gritando no campo: “Linda, gostosa”!

Tem muito isso?

Às vezes tem, mas isso sinceramente não incomoda.

Não é ofensivo?

Não. A gente sabe como é torcedor de futebol. Imagine se um juiz fosse se incomodar com palavrões. A gente tá ali e sabe que vai acontecer. É preciso saber tirar de letra e dar importância o que tem importância.

Você trabalha para ser presidente da CBF?

No momento, eu estou trabalhando para o futebol da Paraíba, que ainda tem muito a fazer. Tem muita coisa para se fazer. Óbvio que para chegar o comando da CBF tem muitos passos a dar.

Esse novo momento de empoderamento das mulheres te favorece?

Acredito que favorece. Mas eu não acredito que seja fator determinante. Creio que o presidente atual está fazendo uma boa gestão. Eu não estou sozinha nessa eu tenho que ser fiel aqueles que confiaram em mim.

De que forma sua gestão no futebol da Paraíba te credencia?

Eu peguei o futebol da Paraíba num patamar aquém de qualquer outra federação. Na época, era na máquina de datilografia. Não existia informática. O negócio era muito manual, primitivo. E a parte da arbitragem, que é o time da federação, foi investir. Nossa arbitragem estava proibida de apitar há dois anos. Todos os cargos de direção foram trocados. Quando eu assumi não tinha árbitro para apitar diante de todo aquele escândalo.

A Operação Cartola?

A Operação Cartola foi muito importante para a Paraíba. Lógico que teve pontos muito negativos, como tiveram positivos. Os pontos negativos que eu herdei foi a falta de patrocinadores. Nenhum patrocinador queria encostar. Inclusive na Copa do Nordeste tinha um patrocinador em comum de todos os estados e esse patrocinador ele mandou para a federação o valor destinado, só que ele pediu para que a marca não fosse incluída a marca dele nos estádios de futebol (da Paraíba). Isso foi um dos pontos mais difíceis da minha gestão foi reconstruir a credibilidade do futebol. Ficamos dois anos sem patrocinadores, mas nesse ano foi briga de televisão para transmitir e patrocinadores para investir.

A Operação Cartola apontou combinação de resultados. A senhora pode garantir que isso não existe mais?

No que diz respeito a arbitragem, sim.

Qual seu olhar para essa profusão de “bets”? Até que ponto podem interferir nos resultados?

As bets trabalham contra a manipulação dos resultados. O que se vê são pessoas criminosas querendo manipular. Existem marginais que vão nos jogadores diretamente querendo influenciar no resultado e no jogo. As pessoas acham que as bets são vilões, quando são vítimas desses manipuladores.

Precisa de uma regulamentação mais séria?

Já está tendo. O Governo Federal está fazendo isso. O Governo está bem antenado. A parte que me preocupa são aqueles que querem manipular para poder ganhar dinheiro fácil dessas bets. Muitas bets só patrocinam se tiver programa de compliance, se não tomam prejuízo e quebram.

O VAR, para muita gente, tornou o jogo muito cansativo. Ajudou ou gelou a emoção do futebol?

Na emoção gelo, mas no que diz respeito ao ser humano, que é passível de erro, acho muito importante o VAR para corrigir o erro logo de imediato. Por que um pouco de técnico e jogador todos nós temos. O problema hoje é quando não se chama o VAR. Eu entendo que é uma revisão, que antes a gente não tinha.

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