Que a poesia de Nêumanne volte à sua fonte (Por Edmílson Caminha) – Heron Cid
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Que a poesia de Nêumanne volte à sua fonte (Por Edmílson Caminha)

22 de outubro de 2023 às 22h37 Por Heron Cid

Em algum momento perdido nas profundezas do passado, uma nave espacial caiu em Monteiro, no cariri paraibano, tripulada por extraterrestres que só se comunicavam em versos, metrificados e rimados. Com a prodigiosa capacidade de assumir a aparência humana, namoraram as moças do lugar, casaram-se e tiveram filhos, que nem desconfiavam dos pais oriundos de outros planetas… A história não é minha, mas de Bráulio Tavares, escritor da Paraíba, para explicar como em Monteiro, município tão pequeno, ainda hoje nascem dezenas de famosos cantadores e poetas populares, a começar pelo lendário Pinto do Monteiro, um dos maiores do Brasil.

A hipótese vale, creio, não apenas para os gênios da viola e do cordel, mas também para outros mestres da poesia e da prosa: Augusto dos Anjos, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Ariano Suassuna, Zé da Luz, Moacir Japiassu, Ronaldo Cunha Lima, Sérgio de Castro Pinto, Bráulio Tavares, que já citei… E mais Pedro Américo, na pintura; Jackson do Pandeiro, Sivuca e Geraldo Vandré, na música; Paulo Pontes, no teatro; os irmãos Vladimir e Walter Carvalho, no cinema; Celso Furtado, na economia… Tantos e tão luminosos talentos, todos paraibanos, só podemos compreender como coisa do outro mundo.

Inscreva-se, nessa relação de admiráveis, o nome do jornalista e escritor José Nêumanne Pinto, cujos versos, reunidos em Antes de atravessar (Rio de Janeiro : Ibis Libris, 2022), são apresentados pelo também poeta e crítico Alexei Bueno: “(…) José Nêumanne é um poeta notavelmente culto, e a cultura não é, como infelizmente se apresenta algumas vezes, um jubiloso atavio da pedanteria, mas a mais perfeita forma da solidariedade humana, pois nos une quase carnalmente à espécie humana inteira, em tudo que ela fez ou conseguiu ser de grande.”

Com a nobreza dos intelectuais que realmente se devem respeitar, Nêumanne faz do conhecimento e do saber matérias-primas de uma obra que enriquece os leitores pelas referências históricas e literárias, da Bíblia à Odisseia, da filosofia grega às coxas de Norma Bengell, das viagens de Marco Polo aos joelhos de Nara Leão, do adagietto de Mahler ao forró de Dominguinhos. Felizmente, o paraibano não segue a ilusória receita do colega Carlos Drummond de Andrade em “Procura da poesia” (não faça versos sobre acontecimentos, nem me reveles teus sentimentos), conselhos tão impraticáveis que o autor foi o primeiro a descumprir… José Nêumanne verseja, sim, sobre acontecimentos, não esconde seus sentimentos – dá-los a conhecer sempre com ardor, entusiasmo, paixão, o que leva Antonio Carlos Secchin a declarar: “Se, quando estudei João Cabral, disse que sua obra se traduzia numa ‘poesia do menos’, agora, com José Nêumanne Pinto, deparamo-nos com uma ‘poesia do mais.’”

São poemas sobre o sertão, a infância, a família que o antecede e a que lhe veio depois, a morte impressentida como as corujas na escuridão da noite:

No dia em que chegar o dia,
nem é preciso que eu esteja pronto,
enfatiotado para a viagem de rumo incerto
e com bagagem feita, além de minha nudez.

Na “Fundação do pai”, a prosa de natureza poética que vai da ressonância bíblica a escritores também marcados pela figura paterna:

Entre pai e filho não há segredos nem mistérios. Entre pai e filho há uma relação de fundadores. Falamos a língua da gênese. Fundamos lares, cidades, destinos. Somos todos primogênitos, não nos vendemos por um prato de lentilhas. Nós dois, nós três, nós mil, nós milhões – e mais Paul Auster, mais Philip Roth. Mais todos aqueles que escreveram sobre ti e sobre mim e sobre nosso filho comum, meu filho, teu neto. Nós todos, os pródigos do mundo, voltamos à casa avoenga e debatemos o destino e a política, a valsa e o fado, a economia e a monotonia, sentados em cadeiras que giram, com o rosto cheio de espuma e o coração gordo de esperança, esquálido de medo, músculo que se contrai e se distrai, carne de abrir e de fechar, chave de viver e de dançar o tango argentino, no cofre do peito.

Nada, porém, maior, mais intenso, mais profundo que a paixão por Isabel, encontro que, muito mais do que amor, é renascimento, recomeço, nova razão de ser e de viver. Musa que lhe sugere cantos líricos:

Ternura e delícia,
meu amor por você
caça e veleja,
derruba e constrói.
Meu amor por você
pinta o sete
e borda pontos de cruz.

Ou comunhão de corpos, a lembrar a poesia erótica de Drummond:

De um lado, a cintura de Isabel
introduz a gruta de mucosas
sob um bosque de pelos
e é ali que Eros foi morar
com sua destilaria de mucos,
que só ao iniciado cabe provar,
e sua confusão de odores
que uma inteira encarnação
não basta para identificar.

Em 1934, o poeta Augusto Frederico Schmidt dedicou seu Canto da noite à mulher, Yedda, homenageada com um dos mais belos oferecimentos da literatura brasileira. Antes de atravessar, de José Nêumanne Pinto, bem que poderia ser aberto com a mesma declaração de amor, consagrado “A Isabel, para que a poesia volte à sua fonte.”

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