Em algum momento perdido nas profundezas do passado, uma nave espacial caiu em Monteiro, no cariri paraibano, tripulada por extraterrestres que só se comunicavam em versos, metrificados e rimados. Com a prodigiosa capacidade de assumir a aparência humana, namoraram as moças do lugar, casaram-se e tiveram filhos, que nem desconfiavam dos pais oriundos de outros planetas… A história não é minha, mas de Bráulio Tavares, escritor da Paraíba, para explicar como em Monteiro, município tão pequeno, ainda hoje nascem dezenas de famosos cantadores e poetas populares, a começar pelo lendário Pinto do Monteiro, um dos maiores do Brasil.
A hipótese vale, creio, não apenas para os gênios da viola e do cordel, mas também para outros mestres da poesia e da prosa: Augusto dos Anjos, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Ariano Suassuna, Zé da Luz, Moacir Japiassu, Ronaldo Cunha Lima, Sérgio de Castro Pinto, Bráulio Tavares, que já citei… E mais Pedro Américo, na pintura; Jackson do Pandeiro, Sivuca e Geraldo Vandré, na música; Paulo Pontes, no teatro; os irmãos Vladimir e Walter Carvalho, no cinema; Celso Furtado, na economia… Tantos e tão luminosos talentos, todos paraibanos, só podemos compreender como coisa do outro mundo.
Inscreva-se, nessa relação de admiráveis, o nome do jornalista e escritor José Nêumanne Pinto, cujos versos, reunidos em Antes de atravessar (Rio de Janeiro : Ibis Libris, 2022), são apresentados pelo também poeta e crítico Alexei Bueno: “(…) José Nêumanne é um poeta notavelmente culto, e a cultura não é, como infelizmente se apresenta algumas vezes, um jubiloso atavio da pedanteria, mas a mais perfeita forma da solidariedade humana, pois nos une quase carnalmente à espécie humana inteira, em tudo que ela fez ou conseguiu ser de grande.”
Com a nobreza dos intelectuais que realmente se devem respeitar, Nêumanne faz do conhecimento e do saber matérias-primas de uma obra que enriquece os leitores pelas referências históricas e literárias, da Bíblia à Odisseia, da filosofia grega às coxas de Norma Bengell, das viagens de Marco Polo aos joelhos de Nara Leão, do adagietto de Mahler ao forró de Dominguinhos. Felizmente, o paraibano não segue a ilusória receita do colega Carlos Drummond de Andrade em “Procura da poesia” (não faça versos sobre acontecimentos, nem me reveles teus sentimentos), conselhos tão impraticáveis que o autor foi o primeiro a descumprir… José Nêumanne verseja, sim, sobre acontecimentos, não esconde seus sentimentos – dá-los a conhecer sempre com ardor, entusiasmo, paixão, o que leva Antonio Carlos Secchin a declarar: “Se, quando estudei João Cabral, disse que sua obra se traduzia numa ‘poesia do menos’, agora, com José Nêumanne Pinto, deparamo-nos com uma ‘poesia do mais.’”
São poemas sobre o sertão, a infância, a família que o antecede e a que lhe veio depois, a morte impressentida como as corujas na escuridão da noite:
No dia em que chegar o dia,
nem é preciso que eu esteja pronto,
enfatiotado para a viagem de rumo incerto
e com bagagem feita, além de minha nudez.
Na “Fundação do pai”, a prosa de natureza poética que vai da ressonância bíblica a escritores também marcados pela figura paterna:
Entre pai e filho não há segredos nem mistérios. Entre pai e filho há uma relação de fundadores. Falamos a língua da gênese. Fundamos lares, cidades, destinos. Somos todos primogênitos, não nos vendemos por um prato de lentilhas. Nós dois, nós três, nós mil, nós milhões – e mais Paul Auster, mais Philip Roth. Mais todos aqueles que escreveram sobre ti e sobre mim e sobre nosso filho comum, meu filho, teu neto. Nós todos, os pródigos do mundo, voltamos à casa avoenga e debatemos o destino e a política, a valsa e o fado, a economia e a monotonia, sentados em cadeiras que giram, com o rosto cheio de espuma e o coração gordo de esperança, esquálido de medo, músculo que se contrai e se distrai, carne de abrir e de fechar, chave de viver e de dançar o tango argentino, no cofre do peito.
Nada, porém, maior, mais intenso, mais profundo que a paixão por Isabel, encontro que, muito mais do que amor, é renascimento, recomeço, nova razão de ser e de viver. Musa que lhe sugere cantos líricos:
Ternura e delícia,
meu amor por você
caça e veleja,
derruba e constrói.
Meu amor por você
pinta o sete
e borda pontos de cruz.
Ou comunhão de corpos, a lembrar a poesia erótica de Drummond:
De um lado, a cintura de Isabel
introduz a gruta de mucosas
sob um bosque de pelos
e é ali que Eros foi morar
com sua destilaria de mucos,
que só ao iniciado cabe provar,
e sua confusão de odores
que uma inteira encarnação
não basta para identificar.
Em 1934, o poeta Augusto Frederico Schmidt dedicou seu Canto da noite à mulher, Yedda, homenageada com um dos mais belos oferecimentos da literatura brasileira. Antes de atravessar, de José Nêumanne Pinto, bem que poderia ser aberto com a mesma declaração de amor, consagrado “A Isabel, para que a poesia volte à sua fonte.”