Quem vai querer assumir o papel de cúmplice do extermínio da alma nordestina? (Por Fernando Moura) – Heron Cid
Crônicas

Quem vai querer assumir o papel de cúmplice do extermínio da alma nordestina? (Por Fernando Moura)

26 de junho de 2023 às 16h59 Por Heron Cid

Fernando Moura dispensa apresentações. Jornalista na essência da palavra, cronista de talento insuperável e um propagandista e pesquisador competente das tradições culturais nordestinas e paraibanas. Por tudo que é e representa, dirige, com todo o mérito pessoal, a Fundação Casa José de Américo.

Nesse fim de semana, ele brindou leitores do jornal A União como mais um das suas distintas colunas. Em “Bandeirolas” tocou no ritmo do refrão do momento: a legítima preocupação do rumo de nossa festa junina, ameaçada ir para o brejo. Não o nosso rico Brejo, mas o que ameaça afogar nossas tradições em lamaçal movediço.

João Batista nesse deserto gritando e alertando pelo óbvio, fiquei imensamente contemplado pelo ‘tratado’ de dom Moura. Pela qualidade da sua crítica e por ter sido generosamente citado em seu levante. Para aumentar o deleite e a responsabilidade, mencionado no mesmo balaio de Rubens Nóbrega, maestro de todos nós.

O manifesto de Fernando Moura vale a pena ser lido. Como ele mesmo disse em mensagem ao autor do Blog – com toda sua astúcia pelos trocadilhos e competência de frasista sênior – “estamos montando a base da (re) volta do São João”. Leia abaixo e subscreva ao final, como fiz, faço e farei. Faremos!

Bandeirolas

Assusta o amadorismo (ou profissionalismo rasteiro) dessa gente que anda metendo a colher na pamonha alheia. Numa analogia mais propícia, o selvagem “capitalismo junino” está esmagando o balaio de milhos de ouro. Pouco inteligente, a estratégia adotada pelos organizadores do São João de Campina Grande – e alguns outros municípios paraibanos – beira a insanidade e pode levar, em médio prazo, à inanição e até extinção da festa que projetou a cidade para o mundo. Quem vai à Argentina, quer dançar tango. Quem vai à Jamaica, quer inalar reggae. Quem vai a Viena, quer valsear. Quem vai a Olinda, quer pular frevo. Quem vai a Barretos, quer laçar sertanejo. Quem sobe a serra…

Reduzir o tamanho de um Flávio José, esquecer, constranger ou boicotar artistas como Santana, Maciel Melo, Alceu Valença, Nando Cordel, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Biliu de Campina, Gilberto Gil, Socorro Lira, Ton Oliveira, Dorgival Dantas, Elba Ramalho, Amazan, Alcymar Monteiro, entre outros milhares de homens, mulheres e grupos musicais reluzentes, não é apenas uma ofensa cultural, mas um homicídio doloso cometido contra o povo nordestino, seus valores e ancestralidades. Algo similar ao racismo, mas sem qualquer mecanismo prático para conter e travar o veneno social que vem minando a “mais brasileira das festas”, fluindo de forma desmilinguida pelas veias da memória coletiva.

Tradições são reconfiguradas, fazendo parte da evolução social. É natural e assimilável. Mas transfiguração é outra coisa. A destruição proposital de lastros culturais, sociais e econômicos é inadmissível e requer movimentação contundente em protesto e reordenamento conceitual. Paraibanos (e nordestinos em geral) não podem continuar servindo de cobaias para bizarras experimentações mercadológicas, usando o Parque do Povo e outros espaços públicos como laboratório de cervejarias e tech companies. Dá até vergonha gêmea tal passividade.

Em tese, forasteiros gananciosos e desprovidos de interesse social nem são tão culpados assim, já que contam com aval regular e oportunista de gestores e empresários imediatistas. Fizessem – como sugerem os colunistas Rubens Nóbrega e Heron Cid, em veementes comentários em seus prestigiados blogs – esses ordenadores/ receptores de recursos públicos um profundo exame de consciência, perceberiam, à luz dos próprios exemplos familiares, que interesses pessoais e político-partidários estão colocando em risco a existência de um legado precioso, diferenciado, conquistado ao longo de gerações, mas sadicamente negado às atuais e futuras, por mero torpor da classe política e inércia da própria sociedade. Quem vai querer assumir o papel de cúmplice do extermínio da alma nordestina? Um dia, a fatura chega.

Pois, então, que rufem as zabumbas, tililinguem os triângulos e floreiem as sanfonas. Que tenha início a reação. Vamos à luta! Cada um do seu jeito, da maneira que achar adequada, mas começando de casa, pelos filhos e netos. Não basta só reclamar. O processo é pedagógico e deve ser constante. O ano inteiro precisa ter a música de junho em si. Na escola, na festinha do condomínio, na playlist do celular, no rádio do carro, na tela da tevê, nas rodas, nas salas, nas baladas, nas biroscas, nos hotéis, nos bordéis, nos festejos de qualquer data, nas praças, nos comícios e guias eleitorais.

Aliás, 2024 está encostado na cancela. O cancão pia na peleja municipal. Tem lobo se esgueirando no cercado do curral. É chegada a hora de fortalecer o movimento “Traga Meu São João de Volta”, concebido por Bráulio Tavares e outros renomados artistas, pouco antes da pandemia. Cobrar revisões de posturas e estimular os que defendam a bandeira da autêntica música nordestina, de ontem e de hoje, já é um bom começo. Pregar no peito
uma bandeirola junina, de pano ou papel crepom, também ajuda à rebelião. Pendurar na porta ou janela da casa, no restante do ano, aí, então, vira revolução. Pacífica, mas nada silenciosa.

*Texto publicado no Jornal A União

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