Adiantei a conclusão deste artigo no título, e é isto mesmo: a culpa é também da imprensa. Eu acuso.
Há um século, quando a maioria dos jornais só publicava o que acontecera no dia anterior, o escritor francês André Gide escreveu: “Chamo ‘jornalismo’ tudo que será menos interessante amanhã que hoje”. A ironia é boa e embute doses cavalares de realidade. Uma das dificuldades desta profissão que professo (ou confesso) é superar o atraso inevitável em relação aos fatos. Nessa tarefa, o desafio é tornar interessante o que é apenas importante e importante o que é apenas interessante.
O rádio e a televisão encurtaram a data de validade dos jornais, mas a imprensa escrita atenuou o problema sendo mais investigativa e mais profunda nas reportagens e análises. Então, sobreveio o tsunami que todo mundo previu e para o qual ninguém se preparou. Com a internet e o seu corolário, as redes sociais, a competição contra o tempo e pela atenção dos cidadãos acirrou-se de tal maneira que exclusividade e furo de reportagem passaram a ser questão de minutos, segundos até, não mais de horas. A imprensa escrita passou a brigar por audiência instantânea, de forma idêntica à dos profissionais de rádio e televisão, só que com ganhos bem menores, na comparação com a televisão, tanto para a empresa jornalística como para os jornalistas, já que poucos abnegados se dispõem a pagar por notícia. Temos de produzir em tamanha quantidade, e tão rapidamente, a fim de alimentar o site no qual trabalhamos,. que parar para pensar um pouco, como procuro fazer agora, parece perda de tempo precioso. O que nos rege são os números do Google Analytics e os cliques que rendem merrecas de anunciantes pulverizados.
Os jornalistas estamos constantemente em desabalada carreira atrás de leitores, espectadores e ouvintes, mas a verdade — essa senhora que achamos ser nosso patrimônio exclusivo — é que somos cada vez menos importantes na vida das pessoas. Os jornais vendem menos do que deveriam, os telejornais são menos assistidos. As rádios enfrentam a penúria. E os sites de notícia, principalmente, desdobram-se para concorrer com o Youtube, o Twitter, o Instagram, o Tik Tok e por aí vai. A imprensa tem de estar em todas essas plataformas praticamente de graça, para ter uma migalha de atenção.
Que confiança é essa?
Sinto muito, colegas: apesar de todo o estardalhaço que se faz com as fake news, as redes sociais divulgam, no mais das vezes, fatos reais. A esmagadora maioria das pessoas agora se informa por essas plataformas, em notas breves, quase telegráficas, o que anula praticamente todo aquele arsenal usado para competir com o rádio e a televisão. Ninguém quer — ou consegue — prestar atenção durante muito tempo a uma notícia com mais de dois parágrafos ou a artigos mais longos. Se você me leu até aqui, agradeço imensamente pelo minuto e meio empregado comigo. Não desanime, peço.
É inútil, além de muito chato, vitimizar-se. Como cantava Cássia Eller, bobeira é não viver a realidade, e eu ainda tenho uma tarde inteira. Não vou decretar a morte do jornalismo, inclusive porque seria suicídio. Vou desenvolver a observação singela antecipada no início deste longuíssimo artigo: a culpa também é da imprensa.
Animais de estimação dormindo que são muito engraçados para não rir
Uma pesquisa divulgada pelo Reuters Institute, em junho do ano passado, deixou os jornalistas brasileiros bastante pimpões. Ela mostrava que, no país, 48% dos cidadãos confiavam na imprensa, um índice maior do que a média global, de 42%. Nos Estados Unidos, apenas 26% diziam confiar em jornais e adjacências; na França, somente 29%. Os finlandeses eram os que mais confiavam: 69% dos entrevistados naquele país achavam a imprensa ponta firme. Acho, sinceramente, que os brasileiros foram — como dizer? — mais cordiais do que os outros ao responder à pesquisa. Jamais fomos muito afeitos a jornais, e ouço cada vez mais gente dizer que cancelou assinaturas, não lê mais notícias e assiste a séries em streaming no horário dos telejornais. Impressionismo? Vá ao Google e constate: o jornalismo impresso perdeu milhares de leitores e o digital não ganhou assinantes suficientes para fazer da imprensa um bom negócio por si só. O ibope dos telejornais também vem despencando no fio dos anos. Que confiança é essa?
Manto da inexistente imparcialidade
A culpa também é nossa. Não enganamos mais ninguém quando buscamos passar a ideia de que somos donos da verdade, sob o manto de uma suposta objetividade e de uma inexistente imparcialidade. Não estou falando das colunas de opinião, é claro, nas quais a honestidade é condição inevitável mesmo quando o opinante é intelectualmente ou até financeiramente desonesto. Opinião, de consciências compradas ou não, será sempre opinião. Estou me referindo ao noticiário.
O articulista conservador americano Bret Stephens, do New York Times, foi preciso — na minha opinião —, ao analisar o beco em que se encontra a imprensa, com a sua objetividade e a sua imparcialidade que não são nada disso. Ele disse basicamente o seguinte sobre os jornalistas e o seu ofício, em artigo publicado nessa quinta-feira, intitulado How to destroy (What’s left of) the mainstream media’s credibility [Como destruir (o que restou da) credibilidade da mídia convencional)]:
“Não somos defensores desinteressados da democracia. Somos atores no interior dessa democracia, com um poderoso megafone que, às vezes, usamos de forma problemática.”
“Não estamos no negócio da “verdade”, ao menos não com o V maiúsculo. Nosso trabalho é coletar e apresentar fatos relevantes ou boas evidências. Além desse ponto, a verdade rapidamente se transforma em questão de interpretação pessoal, ‘experiência vivida’, julgamento morais e outras considerações subjetivas que afetam todos os jornalistas, mas que não devem enquadrar as suas coberturas. O único lugar no qual a verdade não objetiva pode ter um papel de valor na imprensa é na seção de opinião.”
“O fato é que essa objetividade difícil de colocar em prática não invalida que seja o objetivo desejável. Ao contrário, o padrão da objetividade é de grande ajuda aos editores que tentam impedir que os repórteres deem sua própria opinião sobre as coisas ou excluam da cobertura pessoas e argumentos de que não gostam.”
A subjetividade como filtro objetivo
Ao analisar como a imprensa vem tratando os conservadores, os adeptos do homeschooling, os portadores de armas e os apoiadores de Donald Trump, Bret Stephens diz:
“Neste momento, grande parte do jornalismo convencional está falhando nessa tarefa (de ser objetivo e imparcial), tratando essa parte dos Estados Unidos com condescendência e xingamentos (“racista, “desinformado”, “fóbico” e assim por diante). Um dos propósitos da objetividade na reportagem é que ela pode forçar a imprensa a ouvir todos os tipos de pessoas, sem lançar calúnias morais — ao mesmo tempo que permite que essas pessoas se vejam e se ouçam representadas na mídia de uma forma que não seja o menosprezo e a depreciação. Essa é outra boa maneira de reconstruir a confiança.”
Vale para os Estados Unidos e vale para o Brasil. Vale para a esquerda e vale para a direita. Estamos nos achando tão donos da verdade que perdemos o pudor para utilizar a nossa subjetividade como se fosse filtro objetivo, por considerarmos que estamos “do lado certo”. Que começamos a justificar censura a quem está “do lado errado”. Que já aceitamos a autocensura. A polarização — e com a maior porção dos jornalistas do lado esquerdo da Força — deixou os defeitos jornalísticos ainda mais evidentes. Erodimos a confiança na imprensa ao empilhar fatos fora do contexto, como fazem igualmente os idiotas da objetividade. Ao misturar informação com opinião, de forma sorrateira. Ao achar que é lícito contaminar a apuração de uma reportagem com militância, de forma dissimulada ou não, seja em favor de uma personalidade, de um partido ou de uma causa (e ela pode até ser nobre). Ao usar o “outroladismo” como simulacro de equilíbrio. Ao apoiar liberticidas quando nos convém, a pretexto de combater golpistas e terroristas que devem ser enfrentados sem efeitos colaterais na sociedade.
Já cometi alguns desses pecados elencados acima, tanto como repórter, como na função de editor, em quase 40 anos de carreira. Se tenho atenuante, é que nunca fui muito bom nessa coisa de esconder o que penso e ainda tenho essa tendência de externar os meus erros. Não vejo problema em ser odiado pelos motivos certos, ao contrário de tantas vestais que esqueceram o que fizeram no verão passado, mas que se esforçam para ser amadas pelos motivos errados. Por isso mesmo, digo com tranquilidade que a culpa pelas dificuldades por que a imprensa passa, para além daquelas inerentes à profissão e às suas circunstâncias, é também dos jornalistas. Na minha opinião.
Metrópoles