“Entre as muitas maneiras de se combater o nada”, diz o narrador de “As babas do diabo”, conto de Julio Cortázar, “uma das melhores é tirar fotografias, atividade que deveria ser ensinada desde muito cedo às crianças, pois exige disciplina, educação estética, bom olho e dedos seguros”.
Perfeito!
Com certeza, todo fotógrafo que não se limita apenas ao apuro da técnica e ao domínio quase virtuosístico de seus instrumentos, sabe da existência deste sortilégio artístico e desta aventura mágica que transcendem as possibilidades mecânicas e tecnológicas da máquina. Sabe, por exemplo, que fotografar não consiste tão somente em descrever, em registrar, em representar a realidade tal qual é, na sua instantaneidade nua e neutra, na sua espacialidade, que também é temporalidade, física e fechada.
É vendo, vendo bem, isto é, não somente vendo tudo, mas, principalmente, o que os outros não veem, conforme a célebre lição americista.
E mais que vendo, tentando escutar a música silenciosa das imagens e tentando respirar o cheiro forte de suas cores, assim como tatear o fremir inesperado de cada ângulo que a outro se une pelo espelho de contrastes entre luz e sombra, que manuseio lentamente este álbum fotográfico de Antônio David.
À Heidegger, à Sartre ou, sobretudo, à Hemingway, o título, “O ser e o mar”, como que sugere, em cada foto, o tempo e o nada das águas do Atlântico, com seus personagens anônimos e vivos, sua paisagem líquida e tépida, seus crepúsculos incendiados, seus barcos bêbados e solitários, suas nuvens espessas, seu sol de cobalto, aquecendo o sangue úmido da fauna e da flora, como se fora um regente que comanda e dramatiza a orquestra ritmada dos espaços e das criaturas.
O nada que é a vida, com seus absolutos e relativos; o ser, com seus mares, e mar, com seus seres, se desprendem, legítimos, belos e insólitos, da clareira de cada imagem. Paisagem natural e paisagem humana se fundem numa trama intangível, inscrita no recorte intuitivo e estético de cada fotografia.
Como um poeta que organiza as palavras, cedendo sobremaneira ao encanto de sua plasticidade e de sua melodia, aos enredos secretos que as sílabas definem nos fonemas, verbos e substantivos, Antônio David organiza seu olhar, cedendo, por sua vez, à transitividade semântica das coisas, ao seu código imprevisível de beleza, ao liame inapreensível que preside à verdade dos elementos e à dignidade dos homens e dos bichos expostos ao calor do trabalho e entregues às oferendas da vida.
Tem razão Josinaldo Malaquias, quando, em bela apresentação ao álbum de David, fala em “ontologia da luz”. Há, sim, neste ensaio fotográfico, uma ontologia da luz, mas também nele se cristaliza uma ontologia do mar, uma ontologia das vísceras translúcidas do mar. Do mar que, na tessitura arcaica de suas ondas e nas escarpas invisíveis de seus abismos, convoca os animais, os homens, os peixes, para dançar o eterno bailado da vida, flagrada pela percepção de um poeta que faz de seu cotidiano uma prismática epifania.
Nelson Brissac Peixoto, referindo-se ao cinema moderno, afirma que seu dever, entre ético e estético, é nos devolver a crença no mundo. Ora, este dever não é somente do cineasta. É de todo artista que acredita na vida e que respeita o outro.
Antônio David, não tenho dúvidas, é um deles.
MaisPB