O prêmio Nobel de Literatura conferido ao músico Bob Dylan mostra a atual dificuldade de encaixar uma obra de arte em um conceito específico. Se as culturas estão cada vez mais híbridas, também estão suas representações artísticas. Escultura, música e dança se misturam em exposições interativas, que ganhavam muita popularidade antes das imposições pandêmicas.
Mesmo fora dos museus, as novas formas de compreender a arte permitem questionar até suas definições básicas. Não existe consenso para a descrição de Literatura, mas Antonio Candido a compreende como criação ou toque poético ficcional em todos os níveis da sociedade. O dicionário Houaiss, por sua vez, descreve assim a Literatura: “uso estético da linguagem escrita”. Portanto, se Literatura é (também) criação poética em linguagem escrita, o que querem os audiobooks?
Geralmente dispostos em aplicativos para celular, os audiobooks oferecem gravações de leituras em voz alta do conteúdo de um livro. Afinal, quem não teria interesse em ouvir a ex-primeira dama dos Estados Unidos, Michelle Obama, narrando a própria biografia? Quem não gostaria de aproveitar as entonações calculadas do ator Tom Hanks, ao narrar um romance finalista do prêmio Pullitzer? Não é exclusividade dos gringos ter estrelas narrando audiolivros. Em terras tupiniquins, a intelectual Djamila Ribeiro, por exemplo, é a voz dos próprios ensaios em sua versão audível.
Apesar disso, não enxergo muita adesão ao formato no Brasil. A leitura, que é prática individual e se adequa ao tempo do leitor, ainda não tem tantos adeptos quanto merece. Não creio que uma modalidade de leitura que tire do interessado o próprio ritmo, reprimindo a liberdade de uma pausa para refletir sobre as passagens, possua o mesmo impacto. Com efeito, ainda defendo que é melhor ler qualquer texto do que não ler.
Atividades mais mecânicas, como dirigir, podem ser boas oportunidades para consumir conteúdo em áudio, já que os demais sentidos estão concentrados em outras tarefas. Só não vale colidir Literatura e trânsito como fez o poeta Olavo Bilac. No Rio de Janeiro do século XIX, Bilac sofreu primeiro acidente de carro registrado no país, dirigindo a uma altíssima velocidade de 4 km/h. No momento do acidente, talvez também estivesse pensando em Literatura.
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