As estripulias de uma flor mirrada (Por Francisco Leite) – Heron Cid
Crônicas

As estripulias de uma flor mirrada (Por Francisco Leite)

22 de agosto de 2021 às 06h02 Por Heron Cid

Todos os dias, estamos sem assunto para escrever. Graças a Deus! Quem, por vício ou por necessidade, tem tudo roteirizado na cabeça é robô. Os humanos… Somos feitos de carne e vácuo, e é no vazio de uma tela em branco do computador que uma visão, como uma estrela candente, risca o nosso cérebro de um lado ao outro e lá se instala, toda satisfeita. Em sendo estrela boa, fita o cronista e diz: “Observe-me.”

Foi o que aconteceu com aquela flor premida ao pé do banco de praça, suscetível às pisadas desgovernadas dos transeuntes da vida, que, para remoerem os pensamentos ou as agruras diárias, sentam-se naquele banco cinza, concreto solitário, e lá se põem a falar sozinhos, rir sem sentido, chorar as suas desilusões, uma lágrima caída ao pé de uma flor qualquer.

Flor qualquer, uma ova! Fitou-me com seus olhinhos capiongos, azuis de doer. Era mirrada e tinha o caule torto, retorcido sobre si mesmo, três pétalas apenas, duas delas meio carcomidas pelas solas de sapatos; a outra, porque se agarrara à esperança, era verde e viçosa, emaranhada na perna daquele banco, por onde, agarrada ao concreto morto, buscava o Sol.

Como eu estava naqueles dias em que a mente vagueia por todas as nuvens, sem encontrar algum carneirinho em que eu pudesse montar e escrever a crônica do dia, pus-me a imaginar umas baboseiras. Talvez eu devesse transferir aquela flor amarelo-ouro para outro lugar, onde a configuração para a vida estivesse plenamente satisfeita. Mas, não. O vazio da minha mente me questionou. E, se aquela flor fosse o testemunho da resiliência, a necessidade de ensinar aos passageiros da vida que o maior privilégio de viver é ser uma poesia feita de sonhos e resistência? Pois, foi assim que eu, observando as raízes profundas daquela flor, escrevi esta reticência cheia de nada e tudo.

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