O telefone tocou. Era um número desconhecido. Não quis atender. Disse que era Sócrates. “Boa tarde Sr. K, como vai o Brasil? É o doutor Sócrates, o jogador? “Não, não sou do tempo de doutorados”, respondeu. Quem está falando? “Sou eu, Sócrates, esqueceu de mim?”
Sócrates disse que sentia saudades do candeeiro de ferro com asinhas que uma vez compusera o seu gabinete. Fiquei besta. Alguém estava a ser passar por Sócrates, mas não dei bolas.
Ninguém me ligaria se passando por Sócrates, ninguém saberia o que nada saberia. Fiquei a imaginar o trabalho que isto dá, pensei filosoficamente: a vida é cruel, mas as pessoas são mais.
Na mesa, inhame, cuscuz e ovo e um cinzeiro que ainda se usa.
Sócrates começou a falar de um dossier com as sondagens antigas. Índices de popularidade, de eficácia de comunicação, de aprovação e chumbo. Uma encenação. Ai sim vi que era Sócrates.
Mas Sócrates não fazia ideia do lobby, da pandemia e do adjutório das farmácias que caíam sobre nós. Da fortuna que se ganha com medicamentos e máscaras.
Podia ser diferente, mas Sócrates era inteligente, alguém que fosse passível para que todos entendessem. Sócrates me disse que Freud não explica nada. Eu já sabia.
“E o Brasil, qual a viabilidade na estaca internacional?”, indagava Sócrates. Rapaz, seria bom mudar de ares. “Tire uma foto com Aracy de Almeida e me mande”. Ué, então não é Sócrates que estava falando, pensei.
Eu gosto das mulheres, amigo Sócrates, mas o mínimo que eu tenho é um ídolo desportivo, o Zico, que tinha poesia no jogo.
Lamentou Sócrates, prosseguindo no seu monólogo interior. Nem vale a pena pensar nisso. “Entregue a sua liberdade a uma ideia melhor”.
Nisso a linha caiu. Fui para a varanda olhar os salamaleques devidos e pela janela vi dois policiais fumando um cigarro. Tão banal, que de nada servia a cena.
Quando a linha caiu, estávamos entre palavras de compromisso, eficazes, funcionais, pragmáticas o suficiente para não conferir autoridade a ninguém, nem a mim nem ao posto que Sócrates ocupa no mundo.
O Brasil não compreende o Brasil. Tentei ligar de volta e Sócrates não atendeu. Foi mal. Meu olhar pousou novamente nas sondagens.
Tanto trabalho para quê? Para ganhar um lugar na galeria, não tinha dúvidas sobre isso.
Ou será que ainda tenho que me esforçar mais? Procurei o zap e vi que Sócrates não usava esse aplicativo.
Voltei para si e por via das dúvidas, vi curvas descendentes, incompreensíveis.
Liga de novo Sócrates, liga.
Kapetadas
1 – Nude impresso e auditável já. Não dá pra confiar no digital.
2 – O tipo de influencer que eu curto é aquele que me influencia a nunca ser como ele.
3 – Som na caixa: “Onde queres o sim e o não, talvez/E onde vês, eu não vislumbro razão”, Caetano Veloso
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