A deferência ao bom senso e o respeito ao raciocínio lógico não deixam dúvidas quanto à necessidade de impor um freio às tentativas do presidente da República de jogar o Brasil no caos. Na confusão, ele se cria.
Foi nesse ambiente, agravado por uma tentativa de homicídio, que Jair Bolsonaro se elegeu e aposta na remontagem de um cenário de desarrumação acrescido de contornos de grave crise institucional para se reeleger.
Conta com a intimidação como aliada à execução de seu intento. Quanto mais temerosa estiver a sociedade, quanto mais a maioria partidária da democracia estiver convencida de que o país está à beira de um golpe, quanto mais se repete essa ideia, mais se normaliza essa situação e se faz o jogo dos arautos da opressão.
Não significa dizer que se deva ignorar a óbvia preferência do ocupante do Palácio do Planalto por um regime de arbítrio, no qual ele pudesse dar vazão ao impulso de exercer o poder de modo absoluto, a fim de impor ao Brasil suas convicções retrógradas.
Não significa defender a indiferença e a inércia diante das repetidas ameaças chantagistas e bravateiras. Ao contrário. O que não se pode é ceder ao medo. Não aquele que põe o ser humano em alerta contra o perigo, mas o excessivo que paralisa, confunde a capacidade de enxergar a realidade com nitidez e dá ao agressor a sensação de que está diante de presa fácil.
A sociedade brasileira que se organizou e se engajou nas lutas coletivas pela anistia, por eleições diretas, pela volta dos militares à disciplina dos quartéis, que viu a inesperada morte do primeiro presidente civil antes da posse, que viveu dois impeachments, uma hiperinflação e assistiu à condenação criminal da cúpula de um partido no poder sem abalos institucionais não está nem pode se colocar no lugar de vítima ante as investidas de caráter golpista.
Não há possibilidade de o Brasil voltar a ser presidido pela tirania, a menos que a sociedade construtora dos feitos acima descritos permita. A eficácia de uma barreira de contenção depende do poder civil, há mais de 35 anos no comando.
A representação majoritária desse poder elegeu o presidente que se põe contra as regras estabelecidas pela Constituição de 1988 — outra das obras oriundas do suor democrático — e só a maioria dos brasileiros pode destituí-lo. Seja pela palavra das urnas em 2022 ou por autorização constitucional de um processo de impedimento que talvez tivesse um efeito disciplinador sobre Bolsonaro mesmo que não concretizado.
Outra possibilidade seria a via da resistência organizada na construção de alternativas político-eleitorais que contemplem a retomada da normalidade e incorporem os melhores valores. Os mesmos que fizeram da sociedade civil o agente ativo de avanços obtidos ao longo das últimas décadas em que o Brasil acumulou firmeza institucional, força política e musculatura social suficientes para não sucumbir ao fantasma do temor desmedido.
Por esses e mais uma série de outros motivos é que não há razão para levar em conta a hipótese real de os militares se engajarem nos projetos regressivos de Jair Bolsonaro. Ainda que a atual geração de oficiais estivesse interessada em voltar ao velho tempo, a experiência dos últimos dois anos e meio não estimularia as Forças Armadas a dobrar a aposta numa parceria que lhes impôs graves prejuízos em termos de reputação.
Nesse meio-tempo caiu o pilar da competência inquestionável, caiu o esteio da impessoalidade do serviço ao Estado antes da fidelidade a governos, caiu recentemente o alicerce da disciplina, caiu, enfim, o mito da capacidade militar de imprimir moderação às exacerbações presidenciais. Uma ruína. Nem a esquerda mais radical conseguiu promover semelhante destruição no conceito das três Armas junto à população.
O que se ouve hoje de interlocutores frequentes dos comandantes é que a tendência é levar Bolsonaro em banho-maria a fim de evitar confrontos e trabalhar internamente para que os prejuízos não resultem em quebras irremediáveis de hierarquia, notadamente nas patentes mais baixas e nas PMs país afora.
Em recente entrevista, o professor Paulo Ribeiro da Cunha, autor do livro Militares e Militância, resumiu com acuidade a situação: “Os militares estão mais interessados em buscar uma alternativa do que em ver Bolsonaro como alternativa”.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742