Entrevista MaisPB: Zélia Duncan critica "exército de ignorâncias" na gestão cultural de Bolsonaro – Heron Cid
Bastidores

Entrevista MaisPB: Zélia Duncan critica “exército de ignorâncias” na gestão cultural de Bolsonaro

5 de junho de 2021 às 14h11 Por Heron Cid

O novo álbum de Zélia Duncan, “Pelespírito”, celebra quatro décadas de trabalho. O disco é uma extensão do cotidiano da artista e marca o seu retorno à Universal Music, gravadora pela qual ela lançou “Sortimento” (2001), “Eu Me Transformo em Outras” (2004), “Pré Pós Tudo Bossa Band” (2005), entre outros.

Na entrevista ao jornalista Kubitschek Pinheiro para o Portal MaisPB, a artista fala do trabalho e critica a gestão cultural do Governo Bolsonaro. Para ela, um pequeno “exército de ignorâncias” num Brasil que, nas palavras da cantora, “está na lama”.

Confira:

MaisPB – Sobre o nome do projeto, você escolheu ou existe alguma inspiração por trás de “Pelespirito”?
Zélia Duncan – Eu adoro escolher nomes, mas nesse caso, um álbum, quando aparece na minha frente, a coisa é ela. Essa música veio de sopetão, exatamente como a letra tenta descrever. Eu estava me sentindo assim e ainda estamos nos sentindo assim, nesse tempo vazio, cheios de peso e desejos de ficar leve. Bom, eu escrevia as letras, quando fui passar para o computador, já tinha vontade de juntar as duas palavras. Quando isso aconteceu cheguei para Juliano (Holanda), meu parceiro e disse: o trabalho vai se chamar “Pelespirito”. E ficamos muito tocados. Esse disco é todo emocional. Quando fizemos o refrão, pensei: nunca mais vou conseguir separar essas palavras… ( Pele e Espírito)


MaisPB – Quais os grandes desafios ao longo dessa gestação?
Zélia Duncan – Sem dúvida, o maior desafio foi eu resolver gravar minha própria voz. Eu gravei no laptop. Eu gravava e estava sempre em contato com Juliano Holanda e Webster Santos, que assina a produção com a gente, um músico fundamental para editar minha voz. Mas o meu desafio era gravar em casa, uma coisa que nunca tinha feito. Eu aprendi os primórdios de gravação.

MaisPB – E conseguiu bem, né?
Zélia Duncan – Eu consigo me gravar hoje. Consigo fazer vocais. E combinamos – se tiver alguma voz ruim minha, a gente regrava. E nenhuma voz foi refeita. Eu sou uma mulher de 56 anos e a minha voz é um instrumento que vem de um seixo de músculos e cavidades. É um instrumento extremamente delicado. Quando ouço “Pelespirito” confesso que eu me emociono. Essas músicas nasceram juntas, não é como um disco que você guarda uma música de dois anos atrás. Esse disco foi parido, parindo, uma canção atrás da outra.

MaisPB – Comemorando 40 anos de carreira, como você está vendo a Zélia do começo de carreira e a Zélia do “Pelespirito”?
Zélia Duncan – Não vou falar da minha pele não que é covardia. Eu consegui manter um frescor pelo menos pessoal, que tem a ver com o amor pelo que eu faço, pelo meu ofício e vontade de me arriscar e me desafiar para manter esse frescor. Eu penso que sou muito mais aventureira hoje do que quando comecei. Quando começou eu só pensava numa coisa, eu queria cantar muito bem.

MaisPB – O vozeirão é fundamental…
Zélia Duncan – Sim, mas isso mudou para mim. Eu acho que a coisa mais importante para um cantor, até que supostamente tenha um grande vozeirão, é dizer alguma coisa. Eu tentava dizer alguma coisa, mas pra mim antes vinha a parte técnica, eu tinha muita obsessão. Hoje eu sou uma fã de Luiz Tatit, de Tom Walts. A palavra pra mim é muito importante. A palavra está junto com o canto, a expressão, em tudo que eu faço para estar em cena. Isso é um amadurecimento meu, dar valor a todo e o caminho. Por isso tudo é tão importante para mim, onde gravei e ficou algo assim minimalista.

MaisPB – O que você deseja que as pessoas sintam ao ouvir seu novo álbum?
Zélia Duncan – É difícil de responder, imaginar, mas claro que temos os nossos desejos. Eu nunca faço um álbum pensando nos outros. Eu sempre faço um disco muito preocupada que naquele momento seja mesmo o que eu quero dizer e me deixe satisfeita e aí sim, acredito que dessa maneira eu vou achar os cúmplices. Sendo honesta comigo mesma, vou achar com mais facilidade os cúmplices.

MaisPB – Esse álbum tem algo melancólico, né?
Zélia Duncan – Melancólico, misterioso, como eu já disse, um momento triste, um momento que você tem que procurar – cadê minha alegria, minha vontade de viver. Eu vejo meus colegas, muitos e eu me incluo. A gente fica caindo e levantando. No nosso caso, a gente longe do palco, é uma ferida para nós. O que desejo com esse álbum é que ele console as pessoas, como ele me consolou. O disco me salvou.

MaisPB – Então, como é lançar um novo disco, sem estar perto do público?
Zélia Duncan – É a parte mais difícil. Mesmo as lives que a gente faz, tem sempre esse abismo. Depois de cada canção, um outro abismo. Aí a gente está longe do que define a nossa produção, que é o encontro. Eu tenho uma música e um show chamado “O lado bom da solidão”, sou eu sozinha, e falo lá que o lado bom da solidão é a possibilidade de encontrar vocês. Virou o lado difícil da solidão, porque não chega perto de uma plateia.

MaisPB – No final desse disco, você encerra, dando o caminho de que vai melhorar. Vai melhorar, mesmo Zélia?
Zélia Duncan – Eu me entreguei aí. Eu não sou uma pessoa “otimistazinha”, sou escorpião cascudo pra caramba. Sou mais daquele verbo esperançar do Paulo Freire que pressupõe, o movimento, esperançar com movimentos, não esperançar com uma espera simplesmente. Quando penso nisso, penso que precisamos lutar e lembro sempre de uma frase que rolava na minha casa, na minha infância, que é: “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe”. Então, certamente vai melhorar. Eu fecho com essa música, porque ela tem uma cara bem brasileira.

MaisPB – Estamos na lama?
Zélia Duncan – Eu gostaria que minha geração tentasse sair dessa lama, para que a próxima faça essa revolução, porque nós estamos caindo, estamos na lama. O Brasil nunca foi justo, sempre perigoso para as minorias. Nosso país sempre foi um lugar perigoso para as mulheres, mas estamos num momento desse orgulho da ignorância, então, a gente conseguiu dentro do país difícil que já era, a gente conseguiu regredir. Precisamos conquistar aquele pedaço onde estávamos sonhando com um país melhor. A vida é o grande bem que a gente tem.

MaisPB – Como você acha que vai ser, depois que tudo acabar?
Zelia Duncan – A cultura, a arte, sempre foram o acalanto para a humanidade. O mundo sem a arte não dá nem para imaginar como a gente suportaria. Mas estamos num momento onde a cultura é totalmente desprestigiada, a cultura é lixo. Eu fiquei sabendo que o secretário de Cultura usa uma arma, para despachar as coisas que não têm importância nenhuma. Isso é o retrato do que é a cultura para esse governo. Nunca tivemos inimigos, tínhamos pessoas que gostavam de pensar, gostavam do artista. Agora temos um pequeno exército de ignorâncias. Mas é sempre assim, os primeiros atingidos são as minorias. Collor que confiscou nossas poupanças, perto do que temos, vira fada de sininho, perto dessa desgraça. Há dois anos nós estamos falando do óbvio.

MaisPB – Vamos falar do seu retorno para a Universal?
Zélia Duncan – Eu já tinha feito o álbum todo quando fomos procurar a Universal (gravadora) . Foi a Denise Costa, que cuida do meu selo e é minha advogada. Ela lembrou que a maior parte de meu catálogo está na Universal. O presidente é Paulo Lima, e ele estava no estúdio há vinte anos quando gravei “Alma”. Nosso contato foi muito prazeroso. Uma volta boa, uma parceria. Ou seja, “Alma 20 anos” e agora “Pelespirito” Um “time” muito bom à minha volta para a Universal.

MaisPB – Vai sair o vinil do disco “Alma”?
Zélia Duncan – Sim, e vai ter o vinil do “Pelespirito”. Eu faço disco como eu quero, com parcerias. Mas a volta para a Universal, tem algo como voltar para casa.

MaisPB – Vamos falar da canção “Você Rainha”, é uma letra forte, que fala da violência feminina, da violência doméstica, que é uma questão muito urgente, e tem que ser falada. Como é que foi a construção dessa música?
Zélia Duncan – Primeiro de tudo, eu sou mulher. Essa violência incubada, ela acompanha a gente desde que nascemos e crescemos. Quando o peito começa a aparecer, vai na esquina e escuta uma piada. Nessa minha vida de ativista militante que eu virei sem saber, comecei a ler mais e cada vez dá nome às coisas que a gente passa como assédio, o assédio que pode ser verbal, não é só físico. Muitas mulheres sofrem violência física no Brasil e algumas morrem, mesmo. Precisamos de homens envergonhados com essa violência para lutar conosco. Essa música é muito sensível, feita para as mulheres que sofrem, muitas já morreram, vítimas de seus algozes.

MaisPB – Nesta pandemia piorou, né?
Zélia Duncan – Sim, isso teve uma consequência muito grave, para todas as mulheres, para as crianças que presenciam coisas horríveis. Isso teve e tem uma consequência muito grave para todas nós. Eu comecei a entender quando vim para esse mundo de falar mais e ouvir mais, a questão do empoderamento, eu como uma mulher gay. Essas coisas são muito importantes para nós, no sentido de reafirmar a nossa existência e o nosso sofrimento. O que essa música diz é que você Mulher é uma Rainha. Por mais que tentem botar para baixo, você é a rainha da sua vida. E saiba que você não está só…

MaisPB – Zélia todas as músicas desse disco falam da vida da gente….
Zélia Duncan – É a vontade de nos salvar. Fiz esse disco várias vezes chorando, várias vezes eu me emocionei. Eu chorei porque estava encontrando outra pessoa, choro porque não posso encontrar. “Pelespirito” mostra nossa pele retorcida, e o espírito querendo achar um motivo para continuar. Esse disco é muito específico, ele fala da gente, e quanto mais íntima, mais universal. Eu escrevi para todos nós, da nossa espécie que deveria ser humana.

Foto: Denise Andrade

MaisPB

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