Que fizeste da vida? (por Hildeberto Barbosa Filho) – Heron Cid
Crônicas

Que fizeste da vida? (por Hildeberto Barbosa Filho)

17 de janeiro de 2021 às 15h59 Por Heron Cid

Era a pergunta que João Condé ( foto com Guimarães Rosa) fazia a seus pares, nos “Arquivos Implacáveis”, publicados na velha revista O Cruzeiro. Fosse-me dada a possibilidade de respondê-la, eu diria:

– Brinquei de curral de boi de osso e montei em cavalo de pau, fitando as pedras silenciosas fincadas no meio de toda solidão do mundo. Era o agreste áspero de minha infância perdida numa comarca feita de distâncias, esquecimentos, sonhos e esperanças. Estudei em cartilha, decorei a tabuada, sofri na palmatória, porque preferia caçar passarinho, tomar banho de açude e jogar pelada à severa disciplina de Dona Zulmira, a primeira professora e meu primeiro tormento.

Fiz o admissão, o ginásio, o clássico, e desta época, no colégio Estadual da Prata, ficou a lembrança de mestre Vinícius, com suas aulas de filosofia, e o garrancho estropiado dos primeiros sonetos, corrigidos pelo professor Suassuna, que sabia métrica e história. Cursei direito, letras e desasnei, por completo, na rotina prazerosa das grandes leituras.

Amei Dostoiévski, Fernando Pessoa, Dante Alighiére, Charles Baudelaire, Augusto dos Anjos, José Lins do rego e Jorge de Lima. Nunca mais abandonei o claro enigma que me seduz na clareira poliédrica da palavra literária. Como disse Rubstein, referindo-se à música, eu digo: Como conceber o mundo sem a literatura? Casei, tive filhos, plantei árvores e escrevi livros e livros num ritmo que nunca parou. Exercitei a poesia, atento a seus sortilégios indomáveis e às suas fundações intangíveis. Tornei-me crítico literário e procurei fazer da crítica uma prática de convivência com os textos alheios, voltada sempre para a compreensão dos significados e para a arquitetura da forma em suas correlações internas com a densidade do conteúdo, tentando unir os critérios estéticos a um imperativo ético, ao qual nenhuma crítica que se preze deve fugir. Vim de Aroeiras, cidadezinha recortada pelo uivo dos ventos, pelo cinza da poeira e pela tristeza das serras. Morei em Campina Grande e jamais esqueci a carícia de suas noites neblinadas. Fixei-me em João Pessoa e devassei seus bares na boemia literária (Luzeirinho, Pietros, Flor da Paraíba, Camões, Bar do Grego, Entre a Cruz e a Espada, Boiadeiro, Chaminé, Xoxota, Bar da Barreira, Dona Creuza e Bar de Baiano.

Bar que me levou mais de 20 anos, na conversa fora, nas fluidas amizades, na liquidez alegre e melancólica dos brindes inacabados!). Uma temporada em São Paulo, deu-me a dimensão da grandeza do mundo, da riqueza do mundo, da miséria do mundo. Dei aulas à vida inteira e vejo o magistério como profissão e missão. A sala de aula sempre me pareceu um espaço mágico, sem limites físicos ou metafísicos. Para mim, ensinar e aprender nunca acabam e ambas as ações são faces de uma mesma moeda. Tive gado, tive cavalos, tive fazenda. Reneguei, no entanto, os bens de raiz. Formei uma biblioteca, tenho um lugar só meu, um pequenino paraíso, para curtir lentamente o sabor indispensável do silêncio e da solidão. Sim, fui à Europa, e de lá pude ver e sentir um Brasil diferente. Amei muito, fiz amigos, inimigos, tive remorsos, tive grandes alegrias. Arrependi-me de muitas coisas, paguei algumas dívidas, outras, não. Posso dizer que sou feliz, posso dizer que sou infeliz. Estou chegando aos sessenta e sete anos de idade e não tenho medo.

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