Os primeiros parágrafos de uma estória (por Francisco Leite) – Heron Cid
Crônicas

Os primeiros parágrafos de uma estória (por Francisco Leite)

17 de janeiro de 2021 às 16h07 Por Heron Cid

Eu espero não morrer de repente, com um conto entalado no coração ou, o que seria muito pior, com um romance inteirinho cravado na minha mente, rindo de mim, da minha ansiedade em terminá-lo, e ele brincando, gozando da minha cara, reconstruindo-se dentro de si mesmo, destruindo minha escaleta, deturpando meus personagens, dominando-os e levando minha história para outros caminhos dantes nunca navegados.

Pois bem, começo meus romances com uma frase qualquer, totalmente despretensiosa, como, por exemplo, “Excepcionalmente naquele dia…” (Romance A vovó é louca), ou “Não sei por onde começar este relato” (Romance O pequeno Davi), e, a partir dela, agora energizado pela ansiedade, a própria frase vai puxando outras frases, casando-se com elas, fazendo amor, beijando suas partes pudicas ou, na maioria das vezes, refugando-as, estuprando-as, humilhando-as nesse vale de lágrimas da escrita, fio enroscado no outro, novelo fazendo-se, finalmente, o primeiro parágrafo, que já me dá o tom, o sentido e o tesão de escrever.

Todo mundo sabe disso, até a torcida do Flamengo: o primeiro parágrafo de uma peça literária é fundamental. Para o leitor, o primeiro parágrafo é a entrada, umbral da fantasia, salvação de um átimo de tempo, amor à primeira vista ou o refugo, corrosivo descarte, vingança, manhã desesperada, enxaqueca, horror, muitas vezes a separação, desquite e divórcio sem pagamento de pensão literária, pobre do autor…

Para o escritor, o primeiro parágrafo é a raiz do furacão, toda a força dos ventos do redemoinho começa nele, tábua que o conduzirá pelo mar bravio do imponderado, leme, misericórdia, prazer e dor que se desenrola até o ápice.

Tudo começou ali, como o primeiro olhar que arrebata um acasalamento voluptuoso até o gozo final.

Os primeiros parágrafos não precisam ser longos. Cinco linhas podem bastar, ou menos. Em “A vovó é louca”, até acho que exagerei, mas ficou assim, gostei:

“Excepcionalmente naquele dia, a casa da vovó estava em um silêncio remansoso, apesar dos pequenos burburinhos daqui e dali, próprios de um domingo que começara sem grandes novidades. No entanto, os domingos na casa dos Terto Aurora nunca terminavam em algo que se possa chamar de mansidão ou serena paz.”

E no “O pequeno Davi”: “Não sei por onde começar este relato. Poderia ser pelo final das minhas eras, quando o tempo me deu a branquidão da barba, mas os finais das coisas, como as barbas brancas, são tão irracionais que talvez eu deva privilegiar a fase imberbe da vida, cheia de quimeras e de maledicências pequeninas, quando se corre pelo tempo sem percebê-lo, ou lhe dar créditos quaisquer.”

E você, diz aí. Que achou desses dois parágrafos que iniciam meus dois romances? Maiores informações sobre “A vovó é louca” e sobre “O Pequeno Davi” encontra-se no link na bio do meu Instagram @professorchicoleite.

MaisPB

Comentários