Sabor do vento (por Dora Kramer) – Heron Cid
Bastidores

Sabor do vento (por Dora Kramer)

17 de outubro de 2020 às 16h13 Por Heron Cid
Jair Bolsonaro Carolina Antunes/PR/VEJA

No primeiro ano de governo, a impressão mais ou menos generalizada era a de que Jair Bolsonaro não se aguentaria no cargo porque o país simplesmente não aguentaria quatro anos “disso daí”: um presidente hostil, criador de casos, defensor de causas retrógradas, refratário aos preceitos mínimos da civilidade e, sobretudo, desprovido de preparo adequado para o exercício da função.

Pois bem. Quase dois anos e uma pandemia depois, a impressão mais ou menos generalizada é a de que Jair Bolsonaro não só ficará pelo tempo regulamentar como poderá repetir a dose e permanecer oito anos na chefia da nação. Esta passou a ser a previsão corrente desde que o presidente resolveu dar uma de pessoa “normal”, adaptando-se às circunstâncias da política tradicional (para o bem e para o mal). Colheu bons frutos nas pesquisas de avaliação e pôde, com isso, perceber quanto o assistencialismo é bom de voto.

Intuitivo como costumam ser os populistas acometidos por déficit cultural/educacional, ao menos nesta nossa seara tropical, Bolsonaro olhou o movimento dos ventos, sentiu o aroma do ambiente, mediu custos, contabilizou benefícios e ajustou o rumo da sua prosa. Nesse aspecto, o presidente não seguiu o modelo do ídolo americano. Donald Trump recrudesceu no estilo durante a campanha eleitoral e, com isso, segue perdendo terreno para o adversário, Joe Biden.

Se o vaticínio das pesquisas se confirmar e Trump não for reeleito, ficará reforçado em Bolsonaro o acerto da decisão de baixar a bola da agressividade e deixar a agenda regressiva num plano secundário. Ele tem tempo, um ativo essencial obtido com a mudança no ritmo e na direção do passo. Fica no ar a pergunta sobre o prazo de validade dessa alteração de procedimentos.

Embora pertinente, a dúvida não é consistente. Ninguém muda de personalidade aos 65 anos, ainda mais, como é o caso, quando a transformação se dá por razões táticas e/ou estratégicas. Naquela toada de confrontos e defesa de uma agenda obsoleta nos costumes, na política, na ciência, negativista da evolução da espécie humana, Bolsonaro não chegaria a lugar algum além dos limites da bolha de fiéis.

O presidente atuava em cenário irreal, preso a um passado de cinquenta, sessenta anos atrás, hoje irreconhecível para a maioria de uma população jovem como é a do Brasil, e de valores tidos como inaceitáveis por aquela minoria responsável pela indução e condução de processos de desenvolvimento. Ademais, comprava brigas no Congresso e no Supremo Tribunal Federal que não tinha condições objetivas de enfrentar devido às fragilidades dele e da família nos campos político e judicial.

“Se Trump não ganhar, Bolsonaro verá reforçado o acerto da mudança no rumo da prosa agressiva”

Como dito acima, Bolsonaro tem tempo. Inclusive para fazer cicatrizar as feridas abertas entre os devotos insatisfeitos com o que interpretam como desvio do caminho original. Acenos, embora amenos, nesse sentido têm sido feitos.

Nada impede que lá na frente, na hora do vamos ver (se sai mesmo essa reeleição), o presidente refaça o compromisso com a retomada do autoritarismo, com padrões de comportamento superados, com a visão de que proteção ao meio ambiente é coisa de maconheiro, com a caça aos comunistas inexistentes e quimeras tais.

O presidente-candidato terá, então, duas vantagens: o fato de os fiéis não terem para onde correr e o desgaste das teses estapafúrdias que pode levar parte significativa do eleitorado a considerar Jair Bolsonaro devidamente vacinado e curado da doença senil do obscurantismo. Isso se não levar em conta que mudanças na política obedecem ao sabor e ao ritmo dos ventos.

A preocupação dos responsáveis pela introdução no Código de Processo Penal do dispositivo que resultou na liberação e fuga de um traficante já condenado em duas instâncias judiciais não foi com o contingente de possíveis injustiçados que mofam nas cadeias sem condenações. A ideia era desferir um golpe na Operação Lava-Jato e estancar a ofensiva da aplicação da lei àquelas até então intocáveis.

Uma gente travestida de defensora do estado de direito, mas que não dava a mínima quando esse mesmo estado de direito era permanentemente agredido pela regra geral da impunidade, cujo interesse primordial é a defesa do império da tecnicalidade independentemente das consequências.

No benefício concedido ao traficante em questão esteve presente a evidência de que um tiro no abuso de autoridade pode se configurar abusivo para a sociedade.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2020, edição nº 2709

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