Aí o magano —com a licença de Elio Gaspari para uso em jornalismo— sobe uma colina, reúne meia dúzia de desocupados que deveriam estar trabalhando e dispara:
“Bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o Reino dos Céus; bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados; bem-aventurados os mansos porque eles herdarão a terra; bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos; bem-aventurados os misericordiosos porque eles alcançarão misericórdia; bem-aventurados os limpos de coração porque eles verão a Deus”.
E prossegue: “Bem-aventurados os pacificadores porque eles serão chamados filhos de Deus; bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça porque deles é o Reino dos Céus; bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós”.
Dizer o quê? De saída, note-se que o espertalhão prega numa colina porque está querendo rivalizar com Moisés, embora afirme mais adiante não ter vindo para “destruir as leis e os profetas”. Conhecemos bem esse tipo que, como na música “Meu Disfarce”, poderia cantar: “Digo coisas que não faço, faço coisas que não digo”.
Salta aos olhos a exaltação da acomodação autocomplacente, como se os céus fossem um Estado-babá que dispensa a noção de mérito, premiando a passividade. Deve, então, o homem se alegrar com a perseguição? A que se presta o orgulho das vítimas, a “bem-aventurança” dos perseguidos, senão à violência calculada dos oprimidos? O balir presente do cordeiro é só o uivo futuro do lobo.
Não nos enganemos com a retórica em favor da sindicalização dos perseguidos, que só encontrariam no outro mundo a sua recompensa. Se verdade fosse, teríamos a curiosa contradição de os abençoados serem governados pelos amaldiçoados, de modo que os fortes estariam sob o comando dos fracos. Assim, o discurso é falso em sua própria natureza, e a mansidão a que apela é mera senha para a luta sangrenta.
Pior: a tentação messiânica é evidente quando o pregador afirma que os que se submetem a injustiças o fazem “por minha (sua) causa”. Assim, a exemplo de todo demiurgo irresponsável, privatiza, sem pudor, o destino de terceiros.
Muita gente percebeu que reproduzo um trecho do “Sermão da Montanha”, segundo Mateus, e submeto a fala de Cristo a uma interpretação enfezada. Não há bem ou beatitude que resista a uma leitura irresponsável ou fora do contexto. Pode-se ouvir nas palavras de Cristo um convite à generosidade ou a apologia das paixões escravas, que levavam Nietzsche à loucura…
Também eu falo por parábola. A leitura torta de um princípio garantidor, próprio das democracias —o parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal—, resultou na libertação de um facínora, que deveria estar encarcerado segundo o artigo 312 desse mesmo código, mormente porque o artigo 315 impõe ao juiz uma disciplina, que não foi seguida por Marco Aurélio para “decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva”.
Habeas corpus tão ou mais polêmicos foram concedidos naquele tribunal antes da existência de tal dispositivo, o que evidencia que o mal não está na garantia civilizatória, mas na leitura incivilizada dos Evangelhos, de uma receita de bolo ou do Código de Processo Penal.
Para o médio e o longo prazos, tão grave como agredir em favor de André do Rap uma disposição que pode garantir alguma justiça a quase 260 mil encarcerados provisórios é o apelo a um instrumento absolutamente ilegal para conter o mal episódico, como fez Luiz Fux. Recorrer à lei 8.437 para neutralizar a leitura teratológica de Marco Aurélio é de uma ilegalidade cristalina.
Disse o presidente da corte tratar-se de “medida excepcionalíssima”. Errado! Há de ser medida única, para nunca mais. Ou o Supremo deixa de ter um presidente e passa a ter um tirano em potencial. Em matéria de direito, o perigo já é um dano. Salvemos o Evangelho do direito da má leitura dos maganos.
Folha