Quando vem o pretexto (por Kubitsheck Pinheiro) – Heron Cid
Crônicas

Quando vem o pretexto (por Kubitsheck Pinheiro)

27 de setembro de 2020 às 10h00 Por Heron Cid

Eu era jovem e sonhava em ter um Fusca. Meu pai nunca teve um carro. Toda vez que eu juntava dinheiro, o carro era outro preço. Durante muitos anos meu automóvel foi meu pé. Os dois. Nesse tempo, eu já conhecia muita gente. A bela Alessandra Gurgel tinha um Gol branco. Ela me deixava em casa, nunca me pegava. Ela é de Patos, eu de mais longe.

Eu adorava sair para curtir as noites de Tambaú, ela também. Menos que eu. Ela é minha amiga até hoje e nunca mais nos vimos. Mas o fato dela ser minha amiga, já me alegra muito. Amizade é assim, não precisa estar colado, nem falando todos os dias. Ela tinha telefone fixo, eu fui ter anos depois. Ela tem um Instagram, mas usa pouco. Ela é mãe de família, eu sou pai.

Eu tinha pressa e ela também. Não sei pra que tanta pressa. Ela fumava, eu também. Eu tinha o fogo e ela, uma fogueira. Uma morena de endoidecer. Era a líder, se não me engano, do grupo das 12 meninas da praia de Manaira, que na verdade eram seis. Saudade de Gerlena Palmeira.

Eu nunca me apaixonei por Alessandra, nem por nenhuma amiga. A gente pode até desejar, mas com amiga não rola. Ela tinha seu amor e eu procurava o meu. O mundo é uma máquina de moer gente. O mundo nos condena. Eu tinha cabelos preto e ela também. Eu nunca pintei meu cabelo.

Na verdade eu me apaixonei por mulheres sertanejas: uma loira linda, que não me quis e as outras, foi de lascar o cano. Aqui na capital eu queria viver uma temporada livre, sozinho, demarcando o território feito gato. Eu era bem magro.

Me lembro de ligar muito do orelhão pra pedir socorro aos amigos, por uma necessidade bem maior que um amor: para almoçar na casa deles e até pedir um cadeado, porque haviam arrombado minha casa e levado a bicicleta. Tá vendo, amigo é amigo. Sempre ali.

O tempo levou muitas histórias. Cada um foi para o seu lado. Muitos casaram, outros não, uns continuam bebendo todas e outros se foram de vez.

Quando morei em Tambaú, no Edifício Santo Antônio (foto), foi o período mais feliz nos trópicos. Morava num cubículo, salinha, janela, quarto e banheiro. Na salinha ficava a cozinha, o fogão era uma miniatura de duas novas. Uma funcionava, a outra não.

Em Tambaú as noites eram bem aproveitadas. Coisas da idade. Beijos na boca e sexo ao som de um radinho de pilha, que tocava as canções de Roberto, alguns boleros, o fundo musical repetido. Não exista essa coisa de laje, nem de live, mas a vida já prestava, vida sozinha e acompanhada. E não tinha essa violência de hoje.

Namorei com mulheres negras, brancas e ruivas e era muito pouco para quem tinha vinte e poucos anos. Queria ter namorado umas 50 mulheres.

Esse tempo em que vivíamos, era uma eternidade. Toda eternidade dentro de mim, no desejo que se materializava e o prazer que se permitia ir além daquela coisa de dançar colado.

Cada conquista é uma história, uma dedicatória, e eu nunca esqueço. Tudo parece adormecido, numa memória que não dorme.

Eu estava ali na rede, ali sozinho, lendo Borges na varanda, quando veio o pretexto de escrever esse texto. Só isso.

Kapetadas
1 – Nunca foi sorte, sempre fui eu.
2 – O Brasil é um país extremamente egológico.
3 – Som na caixa: “A saudade mata a gente, morena, a saudade é dor pungente, morena”, de João de Barro

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