O Estado brasileiro é laico. O que significa: ele não permite a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, nem privilegia uma ou algumas religiões sobre as demais. Garante e protege a liberdade religiosa de cada cidadão, mas evita que grupos religiosos exerçam interferência em questões políticas.
“Os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais”, disse o ministro Marco Aurélio Mello em 2012 quando o Supremo Tribunal Federal, por oito votos contra dois, decidiu que grávidas de fetos sem cérebro podem interromper a gravidez com assistência médica prestada pelo Estado.
Em mais duas situações, o aborto é plenamente legal no Brasil: quando a continuação da gravidez importa em risco à vida da mãe e em caso de estupro. Foi o que aconteceu com a menina de 10 anos de idade, estuprada desde os seis anos por um tio no Espírito Santo, levada às pressas para abortar no Recife.
Em Vitória, um hospital negou-se a respeitar a ordem judicial de fazer a cirurgia na menina, conforme sua vontade reiteradamente manifestada em diversas ocasiões. A gravidez decorreu de um crime, tipificado em lei. Para a menina, suportá-la e dar a luz equivalia a um processo de tortura. Tortura é outro crime.
O que pretenderam os militantes cristãos, comandados por políticos da direita e da extrema direita, que na noite do último domingo cercaram o hospital no Recife onde a menina estava sendo esperada para submeter-se à cirurgia? Na prática, tornar a Constituição letra morta, ignorando o que ela prescreve.
Os médicos que cuidaram da menina foram hostilizados com gritos de “assassinos”, quando apenas estavam ali para cumprir com seu dever, e em atendimento a uma decisão da Justiça. A vítima do crime de estupro chegou ao hospital escondida dentro de um carro. Foi psicologicamente torturada até último momento.
Cada religião com seus dogmas, por mais que desumanos possam ser alguns deles. Mas cada coisa no seu quadrado – a religião em um, o Estado em outro. O mais cruel é que não se ouviu uma só voz, entre os que se reuniram para afirmar sua fúria à porta do hospital, que clamasse pela prisão imediata do tio da menina.
Com passagem pela polícia por tráfico de drogas, o tio teve sua prisão preventiva decretada, mas fugiu. Seu nome é mantido sob sigilo. Meliantes políticos divulgaram o nome da criança nas redes sociais e anteciparam seu destino quando ela ainda estava sendo transportada para o Recife.
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