É um tanto estranho ver um líder político com a estatura e a história do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticar os primeiros movimentos suprapartidários em defesa da democracia no momento crítico que o Brasil vive, em meio aos arroubos autoritários do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro e de suas ameaças de golpe militar.
Segundo Lula, “o PT já tem história neste país, já tem administração exemplar”. E acrescentou: “Sinceramente, eu não tenho mais idade para ser maria vai com as outras. Eu, sinceramente, não tenho condições de assinar determinados documentos com determinadas pessoas”.
O dilema de Lula não é fácil, mas doloroso, embora possa chocar à primeira vista. Não podemos esquecer que ele ainda tem aberta a ferida da prisão e a sua convicção de inocência. Aqueles que hoje desejam ver seu nome apoiando os manifestos contra Bolsonaro e seus delírios de golpe de Estado, não podem esquecer que ele se sentiu abandonado por eles. Aqueles que hoje pedem sua assinatura nos manifestos antifascistas e ficam surpresos que ele prefira o silêncio, precisam entender a amargura que carrega em suas veias.
Ao mesmo tempo, causa um certo espanto ver o ex-sindicalista, que lutou por anos em defesa das liberdades e dos direitos humanos, preferir o silêncio, sem querer unir-se às iniciativas que vão da direita à extrema esquerda para acabar com os perigos que pairam sobre a democracia. Até mesmo torcedores de clubes de futebol se juntaram, acima de suas rivalidades, para organizar, como fizeram no domingo em São Paulo e em outras cidades, uma manifestação em defesa dos valores da democracia.
É em momentos cruciais que pessoas como Lula, que lutaram por toda a vida em defesa da classe trabalhadora e para manter viva a democracia, precisam esquecer as dores pessoais pelo bem da nação. Seria a forma de demonstrar que ele não é mais um nesta batalha pela democracia e que é capaz de passar por cima de sua justa dor pessoal em defesa de um bem comum.
Em momentos de perigo, as forças democráticas sempre se uniram em um mesmo esforço para sair da barbárie, sem distinção de partido ou ideologia. Em defesa da democracia humilhada, as bandeiras políticas podem e devem tremular juntas.
Lula se queixa de que estes primeiros movimentos em que se unem políticos, intelectuais, artistas e até torcedores em defesa da democracia ―como se fez no Brasil nas famosas manifestações pelas Diretas Já, nos anos 80, em favor da eleição direta para presidente da República―, não estão as reivindicações da classe trabalhadora.
Ele, que dedicou uma vida no sindicato em defesa dos direitos dos trabalhadores, não pode ignorar que os primeiros açoites das ditaduras ameaçam gravemente a classe trabalhadora, enquanto a democracia amplia seus horizontes. Sem contar que, neste novo mundo da revolução tecnológica e do trabalho, conceitos como classe trabalhadora e proletariado deverão ser substituídos por outros conceitos e valores.
Se um dia os sindicatos foram os garantidores dos direitos dos operários, hoje o problema mais dilacerante dos trabalhadores é o dos desempregados, dos que estão sem ocupação, que cresce à medida que as novas tecnologias da robótica avançam.
Lula não pode ignorar que, neste momento no Brasil, onde as forças que desprezam a democracia se dão o abraço da morte e sentem a nostalgia dos tempos do golpe de Estado, a coisa mais urgente, que precisa passar por cima das diferenças partidárias e pessoais, é impedir que o país volte a se precipitar em aventuras golpistas cujo preço em vidas humanas e esmagamento de direitos fundamentais nós conhecemos bem.
Lula ainda está em tempo de ficar de braço dado com aqueles que realmente acreditam que a democracia é, até agora, a melhor maneira de viver em paz e com respeito a ideias diversas. Qualquer desvio da experiência democrática, que garantiu a paz depois da tragédia da Segunda Guerra Mundial, será uma grave ferida, não só para a classe trabalhadora, mas para todos os que rejeitam as noites sombrias das ditaduras que humilham os valores que criam a civilização, esses valores que tornam possível a coexistência respeitosa entre diferentes.
Quando um incêndio começa, o importante é que todos acudam para apagar o fogo. Seria trágico se nesse momento nos puséssemos a criticar que o balde do meu vizinho não vale a pena porque não é do meu clube. A vida sempre tem primazia sobre as diferenças.
Neste momento, Lula deveria esquecer sua dor pessoal e se somar àqueles que correm com seu balde de água para apagar o incêndio, para que não pareça que sua amargura se antepõe à exigência de se lutar juntos para apagar o fogo. Isso o engrandeceria mais que o silêncio.
(Transcrito do jornal El País)