Na tarde desta última terça, 05, a cantora Anitta revelou aos seus fãs em um “storie” do instagram, que estava de dieta. À noite, no entanto, resolveu abandonar seu regime para “jantar” com argumentos provocativos um parlamentar federal.
Explico.
Cantora resolveu convidar o deputado federal, Felipe Carreras, para uma live depois de assistir a um vídeo que está circulando na internet, em que são relatados eventuais prejuízos que a classe artística sofrerá, caso a Medida Provisória n. 948 seja aprovada com uma emenda de sua autoria.
Antes de falarmos do conteúdo da emenda, é importante entender quem é Felipe Carreras.
Deputado Federal pelo PSB de Pernambuco. Felipe, é empresário do setor de entretenimento, turismo e eventos, foi eleito com a influência e a força deste importante segmento econômico para representar os seus interesses.
Coordenador da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Produção Cultural e Entretenimento, o deputado é autor de uma emenda que altera a MP 948, que trata exatamente do cancelamento dos serviços de eventos dos setores de turismo e cultural devido à pandemia do novo coronavírus. A proposta do deputado modifica a cobrança de direitos autorais em eventos públicos e privados.
Para o segmento cultural, caso aprovada com a emenda, a conversão em lei da MP influenciaria diretamente na forma de arrecadação dos compositores, fazendo com que os mesmos percam dinheiro. A lei atual diz que os empresários de eventos é que devem arcar com o valor dos direitos autorais — eles transferem um percentual de em média de 10% da bilheteria para o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). A emenda de Carreras propõe diminuir o repasse para 5% sobre o valor do cachê dos artista.
Trocando em miúdos, a emenda do deputado dá ao empresário de eventos o poder de calcular o valor do cachê do artista embutindo o desconto que constitucionalmente é de sua responsabilidade. Trata-se de um ataque ao direito do autor, pois vilipendia o direito patrimonial que o mesmo dispõe sobre o aproveitamento econômico por meio da reprodução e execução de sua obra. O ataque é ainda mais frontal contra os direitos conexos dos intérpretes, já que cabe ao próprio artista autorizar ou proibir a execução da sua obra em rádios, shows, peças, filmes, programas de tv e toda sorte de eventos.
Tais direitos são, na verdade, garantias pela Constituição no art. 5º, inciso XXVII, regulamentadas através da Lei de Direitos Autorais (Lei n. 9.610/998), modificada em 2013 pela Lei nº 12.853, não cabendo o tema ser tratado de maneira descontextualizada em um mecanismo legislativo tão precário como é uma Medida Provisória, sobretudo quando este tem o fulcro conter avarias do setor de turismo e eventos excepcionalmente durante o período da pandemia.
Na verdade, a emenda sugestionada pelo deputado é o que se conhece nos corredores de Brasília como “jabuti na árvore”. Ora, meus caros, jabuti não sobe em árvore, se está lá em cima é porque alguém o colocou.
A prática de enxertar temas diversos da matéria disposta em Medidas Provisória é mais comum do que se imagina. Para combater tal prática, o STF em 2017, decidiu proibir a inclusão de emendas que não têm relação direta com o texto original da MP, mas que tinham o propósito apenas de pegar carona na sua tramitação para se tornarem lei rapidamente.
O deputado argumenta que o momento econômico enfrentado pelo setor justifica o debate, e eu até concordo. Como também concordo que falta transparência ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – ECAD. O escritório tem diversos problemas relacionados neste sentido, tanto que foi condenado por cartel – sim, Anitta, o ECAD foi de fato condenado – pelo Conselho de Administrativo de Defesa Econômica (CADI) ao pagamento de multa no valor de 90 milhões de reais, recorrendo judicialmente e conseguindo reverter a multa que lhe fora imputada para o ainda vultuoso valor de 38 milhões.
Como disse, concordo que este debate seja travado, que o débito do setor hoteleiro e as suas condições de pagamento sejam postas em pauta – tudo isso é importante. Agora, não dá para travar um debate desta magnitude através de um jabuti semântico colocado dentro de uma Medida Provisória. Neste aspecto, Anitta está coberta de razão – apesar de errar quando defende cegamente o ECAD, que tem como prática falsear dados para escantear médios e pequenos compositores e intérpretes.
Esse é um debate que merece ser travado em momento oportuno, sendo assegurado, claro, o contraditório das partes envolvidas, e tendo o seu resultado convertido em nova reforma da lei de direito autoral. Ponto.
Anitta foi sagaz ao convidar o deputado para um live no seu instagram. Ao questioná-lo sobre (in)conveniência temporal em pautar um debate tão acalorado, de forma antidemocrática, num momento de emergência como o que estamos vivendo, a cantora acabou expondo a estratégia. A irritação do parlamentar ficou evidente.
Ao afirmar que procurou a superintendente do ECAD e que ela não manifestou opinião a tempo da tramitação da matéria, o deputado foi forçado a reconhecer que a construção do texto da emenda “transmite uma ação diferente do seu objetivo, que é proteger o interesse da classe artística”. Esse nunca foi o seu interesse, convenhamos. Não retirá-la do texto só demonstra a contradição de quem se apresenta como representante da classe artística.
Vejamos.
Ao afirmar que apenas um relator indicado pelo presidente da Casa poderia modificar ou retirar o texto da MP, o deputado se valeu de um argumento que não condiz com a verdade completa. O regimento da Câmara dispõe que autor de emenda pode retirá-la até o início do processo de votação. Uma vez iniciado o processo, o texto deve seguir para a votação como está.
A dificuldade em recuar com a emenda se resume a uma demonstração de força do lobby empresarial que ele – aí sim – representa. Em tempo, não há problema em representar um segmento empresarial – não se pode criminalizar isso. O problema é utilizar do ambiente democrático do parlamento para evitar o debate, se valendo de flagrantes vícios legislativos para alcançar o objetivo do grupo econômico que representa. Ou pior, legislar em causa própria, o que pode ensejar representação no Conselho de Ética da Câmara, no caso de manter a propositura.
Anitta encostou o deputado contra a parede porque percebeu que era disso que se tratava. Falou como artista, mas se impôs como uma empresária bem sucedida que constatou uma evidente malandragem. E em matéria detecação de malandragem, cá pra nós, é difícil competir com Anitta, sua carreira é prova disto.
Como aconteceu à noite, o debate talvez tenha provocado aquela raiva típica da fome de dieta recente. Anitta não se fez de rogada, jantou o político com argumentos temperados com a ousadia que lhe é peculiar. Azar o dele. Sorte dos artistas.
Disseram “Vai pro debate malandra!”… e ela foi!
*Rômulo Oliveira
Advogado. Membro da Comissão de Arte Cultura da OAB/PB