Nas palavras da professora Andréa Magalhães, no estudo sobre a “jurisprudência de crise”, “a pandemia do coronavírus neste momento de escassez faz do Judiciário uma tábua de salvação para assegurar a restituição do status quo ou a redução dos malefícios da crise”.
As causas que acodem hoje ao Judiciário reclamam sensibilidade judicial superior ao mero dogmatismo jurídico. A história revela que na Carta das Siete Partidas, códice encomendado por Afonso 10, datado dos séculos 13 ao 15, na partida 3, destinada à administração da Justiça, dispunha-se que os juízes deveriam ser “homens sensíveis e saber direito se possível”.
Essa percepção de outrora aplica-se no momento na medida em que magistrados de todas as instâncias são instados a abandonar a técnica tradicional de aplicar o direito escrito aos casos concretos e ponderar qual desses valores deve prevalecer: saúde ou economia.
As regras jurídicas não são autossuficientes nesse momento de crise sem precedentes, por isso que a flexibilização do direito não significa uma rendição do Estado democrático de Direito. Os debates que acodem ao Judiciário gravitam em torno das competências legislativas dos entes federados, perpassando pela valorização do trabalho humano, pela categorização das atividades essenciais, desaguando na contenda saúde versus economia.
É forçoso reconhecer que, nesse quadro sem retoques, a tarefa do Judiciário é fazer escolhas trágicas, máxime porque tudo é novo e surpreendente. As mortes dos idosos de ontem transformaram-se no óbito dos jovens de hoje.
Não bastassem esses dramas, subjaz espaço para a controvérsia sobre quem pode mais na Federação? A União ou os estados?
A primeira questão sensível, da solução dos “hard cases” humanos, reclama a humildade judicial de recorrer-se à ciência.
Eu mesmo, na minha cadeira no Supremo Tribunal Federal, faço do meu telefone e de ofícios de prazos exíguos (24 ou 48 horas) instrumento para complementar conhecimento de outras ciências para as quais não fui preparado profissionalmente antes de decidir.
A tormentosa questão da competência na Federação, mercê de reclamar uma orientação una e federal geradora de segurança jurídica, deve ser solvida à luz do valor “saúde pública”, cuja temática o artigo 22 e incisos I, IX, XI,XX e XXI da Constituição federal, a lei 9.758/99 (norma nacional de vigilância sanitária e criadora da Anvisa) e a lei 8.080/90 (de promoção e recuperação da saúde) legitimam a assertiva sobre ser da União a competência para legislar sobre a pandemia e seus diversos reflexos.
A União, por seu turno, edita normas especificando diretrizes da OMS e do Ministério da Saúde, órgãos com capacidade institucional para fazê-lo. Essa tempestade perfeita gerada pelo coronavírus coloca em confronto dois valores caríssimos à Constituição: saúde e economia, admite a criação da solução judicial consequencialista.
Juízes devem ser responsivos ao povo e mensurar as consequências das suas decisões. É dizer: não é hora de apregoarmos a máxima “dura lex sed lex”; ao revés, obedecer o sábio aforisma de Santo Agostinho: “necessitas non habet legem”. Vale dizer: “Diante da necessidade, deve cessar a letra fria da lei”.
Folha