Nessa quarentena, leio e releio textos incríveis, como uns desta velha revista espanhola “El Paseante”, de 1988, com especial sobre o Brasil. “Índios que vi”, de Darcy Ribeiro, o que mais gostei.
São flashbacks da convivência de Darcy com grupos indígenas perdidos no meio da mata. Acuados por esta nossa “civilização”, predatória e violenta, eles nos aparecem feios e pobres, mas altivos. Levados pela força da necessidade a negar seus próprios valores, apenas fingem assumir outros que, claramente, desprezam.
Darcy foi ser antropólogo para salvar os índios e trabalhou pra isso. No Xingu ou no Pantanal, no Maranhão ou no Sul, dormia todas as noites derrotado e acordava toda manhã de ânimo renovado.
São mundos muito diferentes, acredite. No Pantanal se sucedem temporadas de chuva e de estiagem. Na estação chuvosa o Rio Paraná transborda e se espraia por milhares de quilômetros quadrados levando comida em domicilio. No tempo da seca, porém, ele recua ao leito e os Kadiwéu são forçados a persegui-lo em busca de alimento.
Na Amazônia há épocas nas quais eles ficam longas temporadas agrupados nas ocas, apertados em espaços mínimos, numa convivência tão íntima que um homem branco sente falta de solidão, e quer privacidade para ouvir os próprios pensamentos.
Darcy recorda que, às vezes, saia de fininho, ia se esconder no mato até para se aliviar fisiologicamente. Do nada, a moita se abria e chegavam quatro, cinco homens, mulheres, querendo saber se ele se sentia bem.
Numa temporada de fome dolorosa, apareceu de repente um índio com um peixinho do tamanho de um dedo. Depois de o chamuscar ligeiramente, ele o repartiu em migalhas com todo o grupo. Darcy pensou: ora, aquele peixe não matava sequer a fome de um. Distribuir daquela forma ajuda? Súbito entendeu: eles não estavam compartilhando comida. Estavam vivenciando solidariamente a fome do outro.
Pense como seria bom viver nossas quarentenas sem ansiedade, feito um índio que espera a grande chuva passar sabendo que não há como acelerar o tempo. E pense que lindo seria olhar em volta depois dessa crise, com o coração solidário de um índio batendo no peito, crendo que nunca há tão pouco que não dê para repartir.
*Evaldo Costa – jornalista paraibano e ex-secretário de Imprensa de Pernambuco