Editorial de O Estado de S. Paulo (29/2/2020)
Um presidente que precisa conclamar diretamente – e em tom épico – atos públicos para demonstrar a sua força talvez não seja tão forte assim, ou ao menos não o quanto imagina ser. É fato que Jair Bolsonaro não conta mais com a ampla rede de apoio que alçou um então inexpressivo deputado à Presidência da República em 2018. Ao longo do ano passado e no início deste ano foram realizadas pesquisas de opinião por diferentes institutos que atestam que o presidente não corresponde mais aos anseios de uma expressiva parcela de brasileiros que confiaram nas promessas do então candidato e, principalmente, viram em Jair Bolsonaro um anteparo à mão para interromper o ciclo de desmandos do PT.
A cisão pode ser observada mesmo em grupos antes mais ligados ao presidente. Como revelou o Estado, as lideranças desses grupos não se entendem sobre a pauta a ser levada às ruas no próximo dia 15. De um lado, estão os bolsonaristas “puros”, ou seja, os que defendem a pessoa de Jair Bolsonaro, o “mito”. De outro, os lavajatistas, que em 2018 viram em Bolsonaro o candidato certo para levar adiante a pauta do combate à corrupção. Ambos os grupos estiveram juntos na eleição, mas hoje divergem quanto à natureza do apoio que dão ao governo federal. A arena dessa contenda são as redes sociais.
Integrantes da “República de Curitiba”, grupo de apoio à Lava Jato, têm sido acusados por membros do “Movimento Conservador” de “sabotar” a pauta dos atos marcados para o dia 15, incluindo na agenda a defesa de temas que não estão diretamente ligados à defesa incondicional do presidente Jair Bolsonaro, como a prisão após condenação em segunda instância.
Movimentos como o Vem pra Rua e o Movimento Brasil Livre (MBL), bastante ativos no impeachment de Dilma Rousseff e nas manifestações que, ao fim e ao cabo, serviram para galvanizar a candidatura de Bolsonaro à Presidência da República, nem sequer participarão dos atos, embora defendam as propostas caras ao ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, e à Lava Jato.
Evidentemente, não se pode antever o resultado das manifestações em prol do presidente Jair Bolsonaro, tampouco o dos atos contrários, marcados por grupos de oposição para o próximo dia 18. Talvez o apoio popular ao presidente não seja mais o mesmo, e por isso ele sinta necessidade de se envolver direta e pessoalmente na convocação da manifestação do dia 15, afrontando a Constituição e o Congresso Nacional.
Outra mostra eloquente do esvaziamento da palavra do presidente da República – e de sua força como chefe do Poder Executivo – foi a manifestação de governadores de ao menos seis Estados indicando que iriam estudar solução jurídica para enviar ao Ceará policiais militares sob seus comandos caso o presidente Jair Bolsonaro não prorrogasse a Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Estado nordestino. Bolsonaro indicou que não o faria durante um de seus pronunciamentos semanais nas redes sociais. Como se sabe, o Ceará está desprotegido desde que um grupo de policiais militares decidiu se amotinar, há cerca de duas semanas. Seria absolutamente temerário não prorrogar a GLO, deixando a população local à mercê dos bandidos, fardados ou não. Confrontado pela reação dos governadores, Jair Bolsonaro decidiu prorrogar a operação, que venceu ontem, por uma semana.
Por seus desatinos, por sua predileção pelas redes sociais, que não raro turvam a visão que um mandatário tem sobre a realidade, por suas injúrias e grosserias, pouco a pouco, Jair Bolsonaro tem apequenado não só sua voz de comando, mas a própria Presidência da República. Parece agir como se tivesse ciência de sua inaptidão para exercer o elevado cargo que ocupa e, assim, não vê alternativa a não ser rebaixar a própria instituição para nela caber. Não surpreende o protagonismo que o Congresso Nacional passou a ter desde a posse presidencial. Isso explica – mas absolutamente não justifica – a hostilidade com que o governo e seus grupos de apoio tratam o Poder Legislativo.
Editorial de O Estado de S. Paulo (29/2/2020)