A minha carreira jornalística começou como resenhista de livros, em 1984. Há 36 anos, jornais e revistas dedicavam muitas páginas por semana a resumos críticos de livros, e foi numa delas que apareceu pela primeira vez o meu nome na grande imprensa. Assinei na Folha de S.Paulo uma resenha de Desidéria (La Vita Interiore, no original), romance do italiano Alberto Moravia que conta a história de uma moça com vocação terrorista que tenta preencher o seu vazio existencial com perversões sexuais. Gostaram, deram-me outros livros para resenhar e, poucos meses depois, fui contratado para editar a seção literária do jornal. Uma temeridade, acho que já disse isso. Tinha 22 anos, estava no último ano da faculdade e não fazia ideia de como funcionava uma redação — faculdades de jornalismo nunca ensinaram nada. Ao fim e ao cabo, entre erros e acertos, acho que consegui dar conta do recado. Aprendi com Nicolau Sevcenko, o melhor colaborador, e consegui não desaprender com Emir Sader, cujas resenhas eu me obrigava a reescrever. Quanto a Antônio Houaiss, só era preciso achar os sujeitos das frases, a fim de me certificar que eles estavam mesmo lá, e abrir parágrafos. É mais fácil quando há ideias nos parágrafos, o que nem sempre era o caso.
Alberto Moravia escreveu dezenas de livros — e eu li boa parte deles. Consta que quase levou o Nobel de Literatura de 1958. O ganhador foi o russo Boris Pasternak, autor de Doutor Jivago, romance que saiu pela primeira vez na Itália, uma vez que Boris Pasternak era autor proibido na então União Soviética. Dizem que a CIA patrocinou a saída dos originais de Doutor Jivago da União Soviética para a Itália, como forma de fazer propaganda contra o comunismo censor. Se for mesmo verdade, a CIA é também uma ótima crítica literária. De qualquer forma, poderiam ter conferido o Nobel de 1959 ou dos anos subsequentes ao escritor italiano. Não aconteceu. Espero que a CIA não tenha vetado o nome de Alberto Moravia. Não haveria razão. Grande amigo do cineasta Pier Paolo Pasolini, considerado subversivo, e eleito deputado no Parlamento Europeu como candidato independente numa lista do Partido Comunista, ainda assim Alberto Moravia se manteve como autor a uma distância segura das ideologias. O deserto moral e político à direita e à esquerda era o seu assunto. “Agora o revolucionário que vem inteiramente do povo, na sua pureza unívoca, equivale ao reacionário que vem inteiramente da aristrocracia”, disse certa vez.
Ele morreu em 1990, com quase 83 anos. Foi mais ou menos por aí que desisti de ler o restante da sua obra caudalosa. Desisti como quem deixa de ver um amigo porque os horários nunca mais bateram. Na semana passada, porém, peguei um livro de Moravia para reler: L’Amore Coniugale (O Amor Conjugal). Devorei a história de um burguês que descobre a verdade do amor ao descobrir que a mulher o traiu com um barbeiro. Neste momento, estou relendo Il Conformista (O Conformista), adaptado para o cinema por Bernardo Bertolucci. O protagonista, Marcello Clerici, quer conformar-se (no sentido de amoldar-se) à sociedade do seu tempo, ser apenas um homem como qualquer outro — e, para tanto, mantém um casamento com uma mulher prosaica e filia-se ao Partido Fascista (o pano de fundo é a Itália de Mussolini), com todas as consequências que isso acarreta. Deserto moral e político. Depois de reler o livro, vou reassistir ao filme de Bertolucci, se é que existe em DVD. Será também um prazer rever Dominique Sanda no auge da sua beleza.
Estou lendo ao mesmo tempo uma coletânea de ensaios, artigos e entrevistas de Alberto Moravia, intitulado Impegno Controvoglia (Engajamento de má vontade). Numa entrevista que deu quando completou 70 anos, em meio ao alastramento da praga terrorista na Itália, o escritor disse o seguinte:
“Um aspecto une todos os terrorismos: a ideia que o medo possa tornar-se um sentimento normal no homem — ou seja, possa coexistir com a confiança que está na base de toda sociedade humana. Em outras palavras, seja compatível com tudo aquilo que faz de um homem um homem. Ora, nós sabemos que não é assim. Na realidade, o medo, no homem, é a exceção, não a regra. Nos animais ditos selvagens, ao contrário, o medo é a normalidade, tanto é verdade que pode coexistir com um sentimento normalíssimo como o amor; as zebras se acasalam a dois passos do leão que as espia; no entanto, o homem aterrorizado perde todo o gosto pela vida. Os animais selvagens vivem tranquilamente a vida deles no medo, são inconscientes de ter medo, a tal ponto que o medo faz parte do seu modo de existir; já o homem que sabe ter medo suspende toda a relação com o real e vive aterrorizado no terror. O terrorismo é, assim, um modo violento de suspender, por todo o tempo que dura o medo, a humanidade do homem. Ou de obrigá-lo a habituar-se ao medo como os animais selvagens, fazendo com que o medo se torne um elemento constitutivo da sua própria alma.”
Quem se comporta como zebra contribui para transformar a savana em deserto — deserto moral e político. É tudo o que querem os terroristas que tentam nos conformar a eles próprios. Não seja uma zebra.
Crusoé