Não vale sequestrar a liberdade de imprensa (por Mario Sabino) – Heron Cid
Bastidores

Não vale sequestrar a liberdade de imprensa (por Mario Sabino)

26 de janeiro de 2020 às 12h00 Por Heron Cid
Glen Greenwald, autor de reportagens que publicaram mensagens vazadas de Moro e Dallagnol

A censura nunca termina para aqueles que já a experimentaram. A frase é da escritora sul-africana Nadine Gordimer. Já experimentei a censura, juntamente com os meus colegas de Crusoé e O Antagonista, quando Alexandre de Moraes mandou retirar do ar a reportagem O amigo do amigo de meu pai, sobre o codinome de Dias Toffoli no email de Marcelo Odebrecht. Não satisfeito, o censor me intimou a prestar depoimento na Polícia Federal. Na mesma Superintendência em São Paulo, em 2008, fui indiciado por defender jornalistas da Veja que haviam sido intimidados por um delegado. Eles haviam revelado bastidores do episódio do dossiê dos aloprados, e o delegado queria saber quais eram as fontes da reportagem. Os democráticos Lula e Vagner Freitas, presidente da CUT, também quiseram me levar para delegacias, por causa de matérias de O Antagonista. Bem antes de ser condenado, Lula acusou o site de ser uma associação criminosa porque mostrávamos exatamente o que ele era: um chefão corrupto e lavador de dinheiro. Sei por experiência própria o que é censura e intimidação judicial.

Peço desculpas aos leitores que devem estar cansados de ler sobre tais episódios. É que Nadine Gordimer, morta em 2014, tem razão: a censura nunca termina para aqueles que já a experimentaram, e isso está longe de ser mimimi, como dizem atualmente. É uma atrocidade investir contra a liberdade de expressão, opinião e informação. É uma violência usar da intimidação judicial contra quem quer que seja, em especial quando se veste toga ou beca. Ter sofrido censura e intimidação não me torna herói ou mártir. Mas me deixou marcado e me dá muita tranquilidade para afirmar que Glenn Greenwald não foi alvo nem de uma coisa nem de outra.

No seu site especializado em publicar produtos de roubo cibernético, o Intercept, ele divulgou mensagens hackeadas da Lava Jato, com o objetivo confesso de desacreditar a Operação e tirar Lula da cadeia. Espertamente, lavou o material pilhado na Folha de S.Paulo e na revista Veja. O site do autodeclarado jornalista e esses veículos foram censurados prévia ou posteriormente? Não. Foram proibidos de fazer ilações despropositadas dos diálogos entre os procuradores? Não. Ele está sendo impedido de escrever ou falar o que quer que seja neste momento? Não. Viu-se até blindado por Gilmar Mendes — que, descobre-se agora, foi também hackeado e, na condição de vítima do crime, não poderia julgar nada em relação ao caso, por impedimento legal.

Um dia antes de ser denunciado pelo procurador Wellington Divino Marques de Oliveira, Glenn Greenwald sentiu-se suficientemente livre, inclusive, para usar as mensagens roubadas a fim de violar o sigilo de fonte de jornalistas de O Antagonista. Cometeu a infâmia para vilipendiar o site, apesar de ter publicado diálogos que mostram apenas como meus colegas Diogo Mainardi e Claudio Dantas agiram de acordo com os procedimentos mais comezinhos do jornalismo. Compreende-se o factoide. Para além da má intenção, Glenn Greenwald não sabe nada de investigação jornalística, é mero copista de documentos e mensagens hackeadas. Acha que ganhou certificação profissional por causa dos prêmios que recebeu no seu país. Prêmios que passaram a ser dados a gente de esquerda por gente de esquerda para fazer propaganda de gente de esquerda — e, assim, tentar legitimar distorções e contrafações. “Glenn Greenwald ganhou o Pulitzer e você não ganhou nada, invejoso”, dizem os petistas aos jornalistas que se recusam a cair na esparrela do Intercept. Acho a maior graça no provincianismo.

O que não tem graça nenhuma é participar de gatunagem. É essencial que se frise que Glenn Greenwald não foi denunciado por publicar as mensagens roubadas e, desse modo, buscar anular as condenações do chefão Lula e os seus comparsas. Ele foi denunciado porque teria se acumpliciado com os hackers estelionatários. Jornalistas correram para dizer que a denúncia foi inepta. Não acho. O diálogo com o hacker Luiz Molição, usado para embasar a denúncia, é ambíguo — em certo momento, soa mesmo como se o autodeclarado jornalista instruísse o criminoso a apagar o que foi hackeado. Deu a dica de que, como já havia copiado tudo, garantindo que as mensagens não seriam perdidas e o sigilo de fonte jornalística resguardava todo mundo, as provas do crime poderiam ser canceladas. É preciso lembrar ainda que, quando começou a divulgar o material criminoso, o autodeclarado jornalista disse que a fonte era “anônima”. E que havia passado “muitas semanas planejando como proteger a nós e a nossa fonte contra os riscos físicos, riscos legais, riscos políticos, riscos que vão tentar sujar a nossa reputação”. A ambiguidade do diálogo com o hacker Luiz Molição dá outra perspectiva a essa proteção “a nós e a nossa fonte”. Não é absurdo desconfiar de que Glenn Greenwald pode ter cruzado a linha vermelha e participado do apagamento de prova criminosa. Isso é igualmente crime.

Os achismos, porém, são só isso — achismos. Caberá à Justiça julgar se a denúncia é procedente ou não (e talvez ela decida quando este artigo tiver acabado de entrar no ar, o que não o invalida). Se julgar procedente, os amigos de Glenn Greenwald no New York Times poderão repetir a mentira que tudo não passa de retaliação da Lava Jato, em conluio com o governo de Jair Bolsonaro. O jornal é livre para publicar lorotas desse tipo, embora os seus assinantes paguem para ler informação correta. Mas alguém precisa avisar o New York Times de que o presidente está neste momento esvaziando o papel de Sergio Moro, o malvadão que condenou o santo Lula apenas para virar ministro, como estampou o jornal. Melhor dar uma ajustada na versão de Pinóquio.

Não importa o resultado do julgamento do recurso contra a denúncia, Glenn Greenwald se meteu com uma bandidagem que, como disse o ministro Luís Roberto Barroso em artigo para a Crusoé de final de ano, estava “Deus sabe a soldo de quem”. Uma “excrescência”, como definiu um integrante da PGR. O autodeclarado jornalista já raptou a narrativa. Só não vale sequestrar a liberdade de imprensa. Muita gente morreu e foi ferida para preservá-la da censura. E ela nunca termina para aqueles que já a experimentaram de verdade. Mais respeito, por favor.

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