Perseverança contra a corrupção (por Deltan Dallagnol) – Heron Cid
Bastidores

Perseverança contra a corrupção (por Deltan Dallagnol)

2 de janeiro de 2020 às 10h55 Por Heron Cid

O fim do ano é uma oportunidade para avaliar os avanços, as dificuldades e o futuro da Lava Jato em Curitiba, assim como os desafios do esforço contra a corrupção no Brasil.

A operação avançou muito em 2019. Só no Paraná, realizou 13 fases para aprofundar a investigação de corrupção ou lavagem de dinheiro relacionados, por exemplo, à Petrobras, ao Banco Paulista, à Odebrecht, ao Grupo Petrópolis, ao Banco Pactual, ao Banco do Brasil, à cúpula de um governo pretérito do Paraná, à Transpetro, à Techint, ao Grupo Oi, a estaleiros, a gigantes mundiais do afretamento e do trading do petróleo, a galerias de arte e à usina de Belo Monte. As cifras das propinas e lavagens continuaram multimilionárias ou mesmo bilionárias.

Boa parte dessas apurações ainda está em andamento para coletar provas, o que inclui numerosos pedidos de quebra de sigilo bancário e fiscal. O Ministério Público formará seu juízo no momento da denúncia e cabe ao Judiciário, sempre, a palavra final. A simples existência de investigações não implica responsabilidade, mas tais informações ilustram que a operação continua se expandindo.

A cooperação internacional seguiu intensa, e neste ano foi executada a terceira fase internacional da Lava Jato, em sedes de tradings do petróleo, na Suíça. O ritmo dos acordos foi retomado, com vinte novos de colaboração e quatro de leniência. Fases, quebras de sigilo, cooperação internacional e acordos de colaboração propulsionaram novas linhas de investigação.

Nesse período, a Lava Jato protocolou 29 acusações, quebrando o recorde de 21 denúncias oferecidas em um ano. Dentre os 100 réus acusados pela primeira vez na operação, estão o presidente do MDB, um ex-ministro do MDB, um ex-presidente da Câmara do PT, um ex-governador do PSDB, banqueiros, um alto executivo de um grupo fabricante de bebidas e executivos de duas novas empreiteiras.

Além disso, 2019 foi o período em que mais dinheiro foi devolvido para os cofres públicos na operação paranaense, 1,6 bilhão de reais, de um total que já supera 4 bilhões. No ano, foram feitos acordos no valor de 2,2 bilhões de reais – desde o início da investigação, esse valor ultrapassa 14 bilhões de reais.

Pela primeira vez no Brasil, foram feitos dois grandes acordos com concessionárias de pedágio, que em conjunto superaram 1 bilhão de reais. De modo também inédito, tarifas foram reduzidas e as empresas se comprometeram a executar obras rodoviárias que reverterão em benefício da população.

Isso tudo é resultado do trabalho de várias instâncias e instituições, com o apoio imprescindível da população. O Datafolha apontou recentemente que 81% dos brasileiros querem que a Lava Jato siga em frente. Contudo, este ano colocou novas dificuldades para o avanço da operação.

Em março, por apertada maioria de seis a cinco, o Supremo entendeu que devem ser enviados para a Justiça Eleitoral os casos de corrupção quando parte do dinheiro desviado é investido em campanhas eleitorais. Sem discutir o mérito jurídico da decisão, ela criou um risco de anulação de alguns casos pretéritos e teve um impacto em investigações em andamento.

No meio do ano, o presidente do Supremo suspendeu milhares de investigações e processos que receberam informações fiscais ou bancárias do Coaf e da Receita Federal. O plenário da corte felizmente reverteu a decisão no fim do ano. Contudo, a decisão valeu por quase cinco meses, prejudicando o andamento das apurações e aumentando o risco de desaparecimento de vestígios e prescrição.

Em outubro, também por seis votos contra cinco, o tribunal criou uma nova diretriz para os processos: os réus delatados devem ter a oportunidade de se manifestar depois de delatores.

É papel legítimo do Supremo derivar novas regras de princípios constitucionais, mas o problema é que a nova norma foi aplicada para o passado, ferindo a segurança jurídica e criando, novamente, risco de anulação de casos.

Contudo, o julgamento mais relevante foi o fim da prisão em segunda instância, decidido por apertada maioria de seis a cinco na corte suprema, em novembro. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, a decisão impacta 5 mil presos atualmente. Dentre eles, estavam Lula e José Dirceu, do PT, e Eduardo Azeredo, do PSDB, que foram soltos. O que mais preocupa, no entanto, são os efeitos futuros desse entendimento.

Primeiro, haverá uma ampliação significativa na demora de punições. Com a demora, em muitos casos, virá a impunidade.

No caso Propinoduto, foram bloqueados mais de 30 milhões de dólares de auditores do Rio de Janeiro. A abundância das provas para condenação não garantiu a efetividade do julgamento. A demora do processo fez com que os crimes de corrupção prescrevessem no Superior Tribunal de Justiça, o STJ, quando ainda havia uma instância inteira pela frente. A prescrição de um crime impede qualquer sanção penal.

Em outro caso, um fazendeiro foi acusado por ter atirado cinco vezes na cabeça de um jovem que teria “cantado” sua esposa, em 1991. A vítima sobreviveu por sorte, tendo sido alvejado na boca e próximo à coluna. Com bons advogados, o processo se perdeu no cipoal recursal das quatro instâncias. Em 2009, julgando esse caso, o Supremo proibiu, pela primeira vez, a prisão em segunda instância. Em 2012, a tentativa de homicídio prescreveu no STJ. O fazendeiro nunca foi ou será preso pelo delito.

O senso comum basta para entender os efeitos dessa decisão. Se o seu filho aprontar e o castigo for postergado por dez anos, após o julgamento de dezenas de recursos para os avós, tios e padrinhos, com grandes chances de impunidade, a percepção será de que o descumprimento das regras não tem consequências. Perde-se o efeito dissuasório sobre ele e os irmãos. Regras que só existem no papel enfraquecem o rule of law ou o império da lei, importante para a prosperidade de um povo.

Para além de injustiça e do enfraquecimento da lei, a decisão também dificulta investigações de corrupção. A Lava Jato só chegou aonde chegou porque cada réu, ao decidir colaborar com a Justiça, dava início a numerosas linhas de apuração. O réu só colabora quando existe uma chance palpável de ser punido. A perspectiva de impunidade sela o acordo de silêncio dos criminosos.

Por isso, a prisão em segunda instância era o principal avanço do Pacote Anticrime em relação à corrupção. Contudo, esse e outros remédios contra os subornos foram derrubados na tramitação do projeto, que se tornou uma lei mais restrita ao combate contra o crime organizado violento. É importante combater delitos de rua, mas também a corrupção.

No pacote, foram ainda introduzidos alguns jabutis, por exemplo, mudanças em regras de prisão. Elas também foram alvo de outra medida aprovada pelo Congresso em 2019 que causa bastante preocupação a quem trabalha contra a corrupção, a Lei de Abuso de Autoridade. A lei anterior precisava ser aperfeiçoada, mas o problema é que sua modernização veio com normas que têm por efeito permitir que poderosos retaliem contra policiais, procuradores e juízes.

A lei passa a valer em 2020 e o juiz que prender ou deixar de soltar alguém, em desacordo com os requisitos legais, estará sujeito a penas criminais. Direito não é matemática e várias vezes os tribunais mandam soltar réus que juízes prenderam de modo legítimo. Sob ameaça de punição, julgadores tendem a prender menos, especialmente aqueles que mais têm força para retaliar, os detentores de poder político e econômico.

Houve ainda em 2019 uma série de ataques à operação e choveram reclamações no Conselho Nacional do Ministério Público. O ano foi de adversidades para a operação Lava Jato e o combate à corrupção no Brasil. Em novembro, o Grupo de Trabalho Anticorrupção da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, chegou a enviar uma missão de alto nível ao país para avaliar aquilo que percebeu como retrocessos no combate à corrupção.

A impunidade é o ponto de equilíbrio da grande corrupção política que domina o Brasil. A Lava Jato desnudou o capitalismo de compadrio brasileiro. Grupos de empresários e políticos se tornaram sócios para roubar a sociedade. Ninguém se associaria para roubar e ir para a cadeia, ainda mais quando as regras que abrem e fecham as portas das cadeias estão em suas mãos. Por isso, a impunidade dos colarinhos brancos é tão sistêmica quanto a corrupção.

Por isso, é preciso ir além da Lava Jato. A corrupção, como outras injustiças históricas e arraigadas, não será vencida com uma investigação, nem da noite para o dia. É preciso deslocar o eixo central do combate a esse mal para o Parlamento, com leis e políticas públicas mais robustas contra o desvio do dinheiro público. Isso depende de uma atuação democrática articulada, consistente e perseverante da sociedade, o que inclui a valorização dos políticos no Congresso que lutam por integridade.

A população brasileira pode fazer a diferença e acredita nisso. Segundo uma pesquisa de 2019 divulgada pela Transparência Internacional, o Global Corruption Barometer, 82% dos brasileiros acreditam que cidadãos comuns podem ser efetivos na luta contra a corrupção, o que é um dos maiores percentuais da América Latina. O ano de 2020 é de eleições e o voto popular é particularmente importante no esforço brasileiro contra a roubalheira.

Nos últimos cinco anos, o Brasil ficou conhecido como um país que combate a corrupção. Vêm sendo responsabilizadas pessoas que acreditavam estar acima da lei e recuperados bilhões, quando a regra era não recuperar nenhum centavo. Os avanços promovidos pela sociedade e suas instituições eram inimagináveis. Contudo, é necessário ser realista: há muitos desafios. Temos uma longa jornada pela frente e não será fácil. É preciso trabalhar com estratégia e resiliência e manter a fé.

*Deltan Dallagnol é procurador da República e coordena a Operação Lava Jato no Paraná.

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