Daqui a dois dias vou para Paris. Não estou com nenhuma vontade de ir para Paris, minha segunda cidade, desde que a prefeita socialista Anne Hidalgo, em conluio com os petistas e adjacências, concedeu o título de cidadão honorário parisiense ao corrupto e lavador de dinheiro. Vale tudo para pressionar pela soltura dele, e aquela gente cosmopolita de Brasília deve ter ficado muito impressionada com a honraria.
Eu, que já estava de mal com Paris porque venho acompanhando de perto a sua degradação, sinto a minha irritação aumentar. Ela está mais suja e insegura. Nunca vi tantos ratos. Há infestação de percevejos. Os trens de subúrbio estão imundos. No coração de Saint-Germain, não há qualquer controle sobre o barulho noturno. As moças correm o risco de ser xingadas se saem com sapatos de salto alto e um pouco mais maquiadas. Os fins de semana são motivo de tensão porque as manifestações políticas ocorrem sem que os limites sejam respeitados e, não raro, degeneram em quebra-quebra ou pancadaria.
Para não falar do terrorismo. A polícia francesa é composta por milhares de Inspetores Clouseau. Um terrorista conseguiu trabalhar durante anos na sede da corporação, em Paris, sem despertar a menor suspeita, apesar de todas as evidências de radicalização islâmica. Só descobriram que o sujeito não era um geek depois que ele matou quatro agentes e feriu um quinto. O terrorista tinha acesso aos computadores do serviço de inteligência e, neste momento, 160 Inspetores Clouseau se debruçam sobre as informações contidas numa chave USB que encontraram nos seus pertences. Sim, 160. Mas não foi o terrorismo que incendiou a Notre-Dame. A culpa é da negligência. A catedral foi queimada por bitucas de cigarro de operários contratados para restaurá-la.
A tradição do café ruim continua a ser respeitada, mas não a do bom vinho. Muitos turistas acham que estão bebendo um copo de Bordeaux honesto, coitados, quando, na verdade, são servidos com vinho espanhol da pior qualidade engarrafado como se fosse francês. Pensando bem, não poderia haver melhor cidadão honorário da Paris de Anne Hidalgo do que Lula. Ele bebe qualquer coisa com prazer.
O corrupto e lavador de dinheiro estrangeiro recebe homenagem, mas Maximilien de Robespierre, “O Incorruptível” da Revolução Francesa, continua a ser tabu. Não há logradouro em Paris com o seu nome. Logo depois da Segunda Guerra, batizaram uma praça de Robespierre, perto da rua St. Honoré. Não durou muito. Nos anos 50, a praça foi rebatizada. Volta e meia, a questão vem à baila. O personagem é tabu porque, à frente dos jacobinos, comandou o período do Terror. A guilhotina funcionou incessantemente sob Robespierre — foram cortadas as cabeças de Luís XVI, Maria Antonieta e Danton. O último era o populista da Revolução Francesa. Danton gostava de um acordão, ao contrário de Robespierre. Uma vez guilhotinado, virou uma espécie de mártir e, como tal, dá nome a uma rua perto da minha casa. Há uma estátua dele perto dos cinemas que frequento e um restaurante chamado Danton praticamente do lado da estátua — que inspirou outro, aberto por um petista em São Paulo, nos anos 80. O restaurante paulistano não existe mais, mas o espírito do acordão petista continua vivo.
Entre os epítetos aplicados a mim e aos meus colegas de site, está o de “jacobino”. Eu nunca mandaria cortar a cabeça de ninguém, só talvez a cabeleira daquele advogado que pode entrar de bermuda no Supremo Tribunal Federal. No Brasil, contudo, isso já é radical demais. Embora eu seja apenas um jacobino barbeiro, acho que Robespierre deveria ser nome de rua em Paris, depois da gestão desastrosa de Anne Hidalgo na prefeitura da cidade, até como vingança contra a socialista que o odeia. Se Napoleão Bonaparte, o “flagelo da Europa”, tem uma rua para chamar de sua, além do túmulo magnífico nos Invalides, por que ele não teria? É um personagem histórico, ora bolas, e Napoleão não teria existido e matado tanta gente em nome da França — nem roubado tantas obras de arte para rechear os museus franceses —, sem um Robespierre que o antecedesse.
Alguns pontos a favor de Robespierre. Era bom de slogan. Ele logo percebeu que Liberdade, Igualdade, Fraternidade, que está na fachada de quase todos os prédios públicos da França, deveria ser adotado como lema. Tudo bem que Igualdade ofende uma premissa do liberalismo econômico, mas a frase é boa como propaganda até hoje, e ninguém a levou tão a sério como ele. Robespierre tinha o defeito de acreditar em tudo o que dizia e fazia, mas, passado tanto tempo, dá para transformar o defeito em qualidade. Era também, como diz a alcunha, “O Incorruptível” — e, para efeito de homenagem, pode-se pegar apenas a parte boa desse seu fanatismo. Por último, sabia fazer autocrítica, mesmo decepando tantas cabeças. Em fevereiro de 1794, três meses antes de ir para a guilhotina, ele disse:
Nós somos intratáveis, como a verdade, inflexíveis, uniformes, eu quase digo insuportáveis, como os princípios.
Deem o nome de Robespierre a uma ruazinha de Paris — e revoguem a honraria dada ao corrupto e lavador de dinheiro de quem o jacobino cortaria a cabeça.
Crusoé